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Unorthodox - A luta de uma jovem pela sua voz (Parte II)

  • Foto do escritor: Raquel Pereira
    Raquel Pereira
  • 21 de mai. de 2020
  • 8 min de leitura

(Parte II do artigo sobre esta mini-série que começa precisamente onde terminou, a invocar regras, tradições e costumes acerca do judaísmo hassídico, e que prossegue depois com as minhas ideias e a minha perspectiva sobre Unorthodox.)


Após o casamento, o casal deve dormir em camas separadas e durante a menstruação, assim como nos sete dias seguintes ao seu término, não pode haver qualquer forma de contacto físico entre o casal, sendo qualquer simples toque proibido. No final deste período, a mulher deve realizar uma mikveh, um banho usado com a finalidade de imersão ritual para alcançar a pureza menstrual (niddah), ritual esse que também deve ser realizado antes do casamento. Estes espaços onde fica a mikveh assemelha-se quase a um spa segundo o olhar ocidental, mas devem ser locais discretos e as mulheres só se lá devem dirigir após o pôr-do-sol. Anteriormente à entrada na mikveh, as mulheres devem tomar banho e limpar-se correctamente, de forma a libertarem-se de qualquer impureza física que vá conspurcar estas águas “sagradas”. A construção destes espaços obedece a regulamentos clássicos, devendo conter água suficiente para cobrir todo o corpo de um homem de tamanho médio, e deve estar ligado a uma fonte de água natural ou um poço, que apanhe por exemplo, água da chuva.

Relativamente à educação, as escolas são separadas, mas há algo em comum relativamente às regras que se vivem em família, como o facto de não existirem televisões, computadores com acesso à internet e da utilização de telemóveis ser muito limitada e exclusiva os pais. Existe uma espécie de redoma que circunda aquelas crianças e estes conhecem muito pouco ou quase nada acerca da cultura popular contemporânea (Beyoncé, por exemplo, não entra no vocabulário).

As escolas femininas foram criadas décadas mais tarde do que as escolas para rapazes, e os currículos destas duas são bastante diferentes, sendo a educação masculina muito mais limitada uma vez que se centra quase em exclusivo nos textos religiosos e na Torah, enquanto às mulheres não lhes é permitido estudar este último, aprendendo maioritariamente as leis do judaísmo que se aplicam ao seu papel. Complementarmente, estudam também matérias como saúde, inglês ou história, existindo leis governamentais que obrigam a existência destas disciplinas nos currículos femininos. Ao contrário do que eu pensava, em muitas famílias são as mulheres a principal fonte de rendimento, uma vez que tem acesso a disciplinas práticas e relacionadas com o mundo exterior, enquanto os maridos se dedicam, muitas vezes em exclusivo, ao estudo religioso. Maioritariamente, os empregos femininos estão relacionados com secretariado, educação ou vendas e acontecem dentro da comunidade. No entanto, a família e o seu crescimento devem ser sempre uma prioridade que nunca deve ser descurada.

Enquanto pesquisava, encontrei esta entrevista disponível no Youtube (podem ver aqui), na qual quatro jovens, também eles saídos da comunidade hassídica de Williamsburg, relatam, entre outros pormenores, o facto de haverem diversas palavras proibidas, que eles não devem aprender enquanto crescem, como, espantem-se!: dinossauros ou universo, que remetem para os temas da evolução da humanidade, ou até ginásio, uma vez que não existe o conceito de exercício físico – o corpo não interessa e sim a mente. Tudo é motivado pelo medo e toda a educação é baseada na ideia constante de punição e de Deus como uma entidade a temer.

Para além de orientações de comportamento mais gerais (o que escrevi até aqui foi um pequeníssimo resumo de algo tão complexo), e durante a série vamos testemunhando outros tantos pequenos pormenores para os quais tentei procurar explicação:

- O dever de lavar as mãos ao acordar, antes de sair da cama. As razões são três e existe um ritual específico que deve ser cumprido ao realizar este acto. No templo sagrado, os sacerdotes lavavam as mãos antes do serviço diário, ora, se todo o indivíduo é um sacerdote no templo de seu lar e coração, as acções diárias não podem começar, sem as mãos serem lavadas. Enquanto o corpo descansa, a alma sobe ao céu para se recarregar. Apenas os poderes da alma mais básicos são deixados no lugar - aqueles necessários para as funções corporais básicas. O vazio resultante permite um estado espiritual negativo chamado tumah. Ao acordar, aos mãos devem ser lavadas para remover os vestígios remanescentes dessa tumah. Para além disso, durante a noite, as mãos frequentemente tocavam áreas privadas, devendo também por isso ser limpas.

- O pequeno objecto que vemos nas paredes das entradas das divisões das casas. Chama-se mezuzah e é um pedaço de pergaminho chamado klaf, inscrito com versículos hebraicos específicos da Torah e guardado num estojo decorativo. Este é afixado à porta dos lares judaicos para cumprir a Mitzvá (mandamento bíblico) que diz "escrever as palavras de Deus nas portas e nos batentes das portas da sua casa".

- As superfícies da cozinha totalmente cobertas com papel alumínio, o que acontece durante a Passover, ou Pessach, de forma a garantir que as áreas sobre as quais os alimentos são preparados durante esta semana estejam livres de chametz (alimentos com agentes fermentadores, que são proibidos neste período). Para preparar uma casa para esta ocasião, deve-se deitar fora qualquer vestígio de chametz e ainda limpar completamente todos os espaços, em especial a cozinha. O Passover ou Pessach é um festival de oito dias, que acontece no início da primavera, e que comemora a emancipação dos Israelitas da escravidão no antigo Egipto.

- A alimentação judaica segue as regras kosher que significa literalmente “fit.” As leis de kosher definem não apenas os alimentos adequados para o consumo, mas também como são devem ser preparados e servidos. Assim, certas espécies de animais (e seus ovos e leite) são proibidas - principalmente carne de porco e mariscos; carne e leite nunca devem ser combinados e devem ser utilizados utensílios separados para cada um deles, devendo ser observado um período de espera entre a sua ingestão; a carne deve provir de animais abatidos de uma maneira específica (e indolor) conhecida como shechitah, e certas partes do animal (incluindo o sangue) devem ser removidas; como até mesmo um pequeno traço de uma substância não-kosher pode estragar um alimento, todos requerem certificação por um órgão de supervisão confiável de rabinos ou kashrut.

Depois deste pequeno (grande) desvio, que para mim foi absolutamente necessário para tentar compreender de forma um pouco menos superficial todo este universo tão estranho e distante aos meus costumes, assim como todos estes personagens e em que universo de movem, regressemos então (finalmente) a Unorthodox e a Esther Shapiro.

Shira Haas, a actriz israelita de apenas 25 anos que protagoniza a série, disse numa entrevista que esta se debruça sobre o direito a termos a nossa voz, e de facto, a história de emancipação da Esty e a sua aprendizagem neste novo mundo, onde vai lutando por realizar sonhos, por ter uma carreira e uma nova vida de acordo com os seus critérios e vontades pessoais, conseguiu fascinar-me. Mais do que com a história desta personagem, mas com as histórias em que esta se inspira, uma vez que é necessária uma coragem impensável para abandonarmos tudo o que conhecemos e deixarmos para trás todos os nossos familiares e amigos e começar uma nova vida partindo do zero. Considerando que a grande maioria (se não a totalidade) da cultura contemporânea é desconhecida para estas pessoas, existem inicialmente poucos factores que garantam alguma similitude, sendo que muitas precisam, por vezes, de ajuda até para as tarefas mais simples como a ida a um restaurante.

O processo mental necessário para largar as amarras é muito profundo e negar vários ensinamentos que lhes são incutidos persistentemente desde crianças, exige tempo e espaço. Para uma mulher que está habituada a regras de vestuário tão restritas, a liberdade de poder vestir uma t-shirt a mostrar o cotovelo e umas calças de ganga exige uma dolorosa adaptação, uma vez que na sua comunidade, desrespeita às regras é afrontar o divino. As dores de crescimento podem ser dolorosas e a cena em que Esty come fiambre pela primeira vez é um exemplo disso mesmo.


Deborah Feldmand faz uma pequena aparição na série, contracenando com Shira Haas.


No entanto, ao ver o desenrolar da história, fiquei com a sensação que a série optou por um certo facilitismo na forma como aborda a integração de Esty e na sua adaptação a uma vida secular. Partindo da simples ideia de que se qualquer um de nós emigrar e se vir num país novo com uma língua e cultura diferente, vai haver sempre período de adaptação que se pode revelar árduo e penoso, para Esther, e tomando como exemplo alguns testemunhos que vi, a saída uma comunidade ultra-religiosa e fechada e a adaptação a novas regras e à liberdade e a um país novo, dá-se de uma forma bastante leve, e não consegui deixar de contentar a ideia de que todo este processo deve ser bastante mais doloroso e difícil.


Para além de Esty, o outro pólo da história centra-se no seu marido Yanky Shapiro (Amit Rahav) e Moishe Lefkovitch (Jeff Wilbusch), o primo problemático, também judeu ultraortodoxo mas com um pé nos vícios seculares proibidos, com um smarthphone com acesso à internet que usa para jogar de forma compulsiva online. Opostos um dos outro, os dois viajam juntos até Berlim para encontrar e levar Esty de volta a casa e no meio desta jornada, não consegui deixar de nutrir empatia pelo dócil e puro Yanky, que aceita casar com Esty, mesmo quando ela lhe diz logo no primeiro encontro que é diferente, e que se sente perdido e desesperado quando passado um ano de casamento ainda não conseguiu engravidar a mulher, o que naquela comunidade é impensável. Pensando em alguém que nasceu naquele contexto, e é constantemente pressionado pela família, aquele é a realidade que conhece e na qual foi educado, portanto para ele não haveria outra hipótese.

Curiosa é a história do actor Jeff Wilbusch, que interpreta o intimidante primo Moishe. Nascido em Haifa, Israel, também numa comunidade judaica ultraortodoxa hassídica, a comunidade de Satmar de Mea Shearim, é o mais velho de 14 irmãos. Com apenas 13 anos abandona Israel com destino a Berlim na tentativa de ser actor e agora, quando tem conhecimento deste guião e da vontade da produção de contar esta história, o actor sentiu desde uma forte ligação e enorme vontade de participar neste projecto, que representa uma oportunidade única de dar vida e visibilidade no écran ao universo onde nasceu e cresceu, raras vezes representado no mundo ocidental.

Para a recriação de todos estes costumes de forma acertada e com o intuito de fazer o retrato desta comunidade da forma mais fidedigna possível, foi necessária uma investigação exaustiva por parte da produção de forma a evitar erros grosseiros e apresentações erradas. No The Making of Unorthodox também disponível na Netflix, as produtoras comentam que criar esta série foi equivalente a produzir uma série de época, recheada de pormenores, sendo que a própria Deborah Feldman foi consultora e trabalhou com a equipa assim como Eli Rosen, o actor que faz de rabi e que tal como Jeff Wilbusch, também nasceu numa comunidade hassídica, neste caso em Brooklyn. Actualmente, e depois de ter compreendido que não era estudar direito que pretendia, Eli é consultor e especialista em cultura judaica iídiche e hassídica, trabalhando frequentemente na indústria do entretenimento, tendo sido ele o responsável por ensinar iídiche ao elenco da série, que teve que aprender o dialecto em apenas alguns meses.

Nesse sentido, e como referido, a série é falada sobretudo em iídiche, uma língua da família indo-europeia, pertencente ao subgrupo germânico, que foi adoptada por judeus, particularmente na Europa Central e na Europa Oriental, que a escrevem utilizando os caracteres hebraicos. Para além disso, é também falada em inglês e, pontualmente, em alemão, sendo a primeira série de repercussão internacional que toma o velho idioma dos judeus centro-europeus como língua primordial.

A série estreou na Netflix a 26 de Março e foi produzida por Anna Winger e Alexa Karolinski, sendo uma produção alemã, e tendo sido filmada maioritariamente na Alemanha e em Berlim excepto as cenas de rua de Williamsburg.

Vejam aqui o trailer de Unorthodox.


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