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Normal People: A belíssima adaptação do romance de Sally Rooney

  • Foto do escritor: Raquel Pereira
    Raquel Pereira
  • 11 de jun. de 2020
  • 7 min de leitura


Normal People é uma das mais bonitas histórias que vi nos últimos tempos, e se escrever sobre amor é clássico e intemporal e são aos pontapés os livros, séries ou filmes que têm como tema central o amor entre duas pessoas ou os desgostos por ele provocados, esta série poderia apenas ser apenas mais uma por entre tantas que contam uma dessas histórias do casal que se apaixona e desapaixona e que passaria despercebida nesta miríade de oferta. Mas o primeiro amor que une Marianne e Connel ultrapassa qualquer cliché romântico-piroso e impõe um novo patamar na forma de contar uma história de amor dos tempos modernos, proeza conseguida pela incrível conjugação de argumento, actores, realização e cinematografia.

Adaptada a partir do livro homónimo da autoria da escritora irlandesa Sally Rooney, Normal People segue a história de Marianne Sheridan (Daisy Edgar-Jones) e Connel Waldron (Paul Mescal) colegas de secundário na cidade irlandesa de Sligo, e acompanha-os durante os quatro anos seguintes, já enquanto frequentam a Trinity College em Dublin.

Comecemos com as apresentações: Marianne vem de um contexto económico abastado e vive com a mãe e o irmão, após o falecimento do pai, sendo a relação entre estes três personagens distante e fria, sem demonstrações de amor ou proximidade. É inteligente, perspicaz e pespineta, não deixando ninguém sem resposta, colegas ou professores, nem perdendo uma oportunidade para expor a sua superioridade e asseverar o seu desdém. É o típico patinho feio, gozada e solitária que passa as horas de almoço isolada a ler Marcel Proust. Já Connel é a estrela popular da equipa de futebol gaélico da escola, mas não encarnar o estereótipo do atleta adolescente, sendo bom aluno, inteligente e com um gosto particular por literatura. É dos poucos que conversa com Marianne, que simultaneamente o fascina e intriga. A precariedade da família de Connel, que vive apenas com a mãe solteira numa pequena moradia, é estrutural para o desenvolvimento não apenas desta personagem, mas também da sua relação com Marianne, criando desequilíbrios difíceis de contornar e marcando a sua relação com o próximo e parte da evolução desta história.

A relação dos dois intensifica-se nos encontros casuais que têm quando Connel vai buscar a mãe a casa de Marianne, que lá trabalha enquanto empregada doméstica, e os dois acabam por iniciar um romance, secreto e intenso, próprio da adolescência, mas que termina de forma abrupta quando Connel convida outra rapariga, com quem já se havia envolvido anteriormente para o “Debs dance” (equivalente ao nosso baile de gala), deixando Marianne arrasada e a lidar sozinha com a violência do primeiro desgosto de amor. Porém, passados vários meses os dois voltam a encontrar-se, já na Universidade, e agora com os seus mundos virados do avesso e os papéis invertidos. Marianne é popular e prospera na Trinity College, florescendo entre estudantes endinheirados que dirigem os clubes e sociedades universitárias, com um namorado rico, popular e altamente confiante. Já Connell sente-se fora do seu meio natural e com diversas dificuldades de adaptação, inseguro e desarticulado, trabalhando como empregado de mesa num café em part-time e dividindo quarto numa casa com outros estudantes.



Apesar do tempo que passaram afastados, a sua química permanece inalterada, e nos três anos seguintes vão construindo uma forte relação, de amizade profunda, confiança, lealdade, amor e sexualidade. Os dois acabam por entrar juntos na idade adulta e compartilhar as dores de crescimento que esta transição acarreta, e se a relação de amor pode ser inconstante, pautada por términos e reatamentos, a devoção que partilham um pelo outro torna-os inseparáveis, o porto de abrigo com quem dividem embaraços, emoções, horrores, humilhações, derrotas e glórias. É a Marianne que Connel recorre quando é vítima de uma tentativa de assaltado e é a Connel que Marianne recorre quando a sua relação com o irmão se torna violenta. É nas conversas que têm um com o outro que são verdadeiramente eles próprios, sinceros e transparentes. Mas é também na sua relação amorosa que tem maiores dificuldades de comunicação, deixando passar mal entendidos e falhando na demonstração dos seus verdadeiros objectivos e quereres. São as pequenas grandes contradições das relações humanas do nosso tempo que Sally Rooney consegue captar de forma tão transparente e crua, construindo uma história poderosa de intimidade, afecto, dinâmica de poder, divisão de classe mas principal e maioritariamente amor, interligando-os sempre ao mundo contemporâneo e aos problemas colectivos da sociedade digital após a grande recessão de 2008. Também a elevada e complexa construção das personagens permite explorar de forma profunda os seus defeitos e qualidades e integrar outros temas como depressão, solidão, morte e a nossa capacidade de resposta e adaptação aos problemas que nos rodeiam enquanto nos procuramos descobrir a nós próprios e ao nosso caminho numa sociedade individualista e egoísta.

E todos os pequenos momentos formativos da adolescência e da entrada na idade adulta estão presentes, desde o êxtase do primeiro beijo, a perda da virgindade e as experiência e contradições do sexo, até à brutalidade da primeira traição, a compatibilidade e incompatibilidade de personalidades, a construção de novas amizades, a procura por voz no(s) relacionamento(s) ou a aquisição de armadura individual obrigatória para lidar com a brutalidade do mundo, e são captadas com um lirismo e uma poética que eleva a história e a torna especial.

Vi a série sem ter lido o livro, sem conhecer Sally Rooney e o seu trabalho, e a complexidade e a intensidade da sua escrita fizeram-se pensar que se trataria de uma autora mais velha, alguém cuja maturidade lhe permitiria criar estes personagens. Depois percebi que Sally Rooney tem 29 anos (é mais nova do que eu), e após ultrapassada a perplexidade inicial que esta revelação proporcionou, imediatamente este dado fez todo o sentido, pois só alguém desta geração a consegue (d)escrever de forma tão brilhante e ser a sua voz.

O primeiro livro da autora Conversations with Friends foi editado em 2017 e uma revista irlandesa apelidou-o de "pós-irlandês", pois estava tão distante da tradição literária nacional que era irreconhecível. Normal People, editado 2018, o segundo livro de Rooney, rapidamente se tornou um best-seller e integrou a lista desse ano para o Man Booker Prize, venceu o Irish Novel of the Year de 2018 e foi considerado Waterstones' Book of the Year, entre outros galardões de igual mérito. É um dos romances de língua inglesa mais admirado da década, tendo sido apelidado pelo The Guardian como "quase um texto sagrado" e o escritor e dramaturgo Sebastian Barry refere-se a Rooney da seguinte forma: “There is a uniqueness in Sally Rooney, not only in her absolutely crystal clear style, but also in her universal success. It is difficult to identify a comparable moment in Irish writing, both in its breadth and its immediacy, unless you can go back to the impact that the novel, and more particularly the film, of Roddy Doyle’s The Commitments had in the early 1990s. There are other equally radiant careers, more conventionally spread over decades, like Anne Enright’s, or Colm Tóibín’s, but the suddenness of Sally Rooney, the almost abrupt arrival, reminds me more of a figure like Martin McDonagh in the theatre. There is a time before Sally Rooney and a time after.”


A escritora irlandesa Sally Rooney


Adaptar uma obra literária para a televisão é sempre um trabalho cauteloso, mas adaptar um livro com tamanho sucesso e com uma trama tão pessoal, intensa e íntima e fazê-lo sem deixar cair a sua poética pode-se revelar um fiasco, com os fãs geralmente de tochas em punho, prontos para pedir que rolem cabeças quando estas falham os originais. No caso de Normal People, das várias críticas que li, a grande maioria é favorável a esta adaptação e vários consideram que a série consegue até superar o livro (pasmem-se!!), com Lucy Mangan do The Guardian a dar-lhe 5 estrelas. Este sucesso deve-se ao facto de Sally Rooney ter sido uma das guionistas da versão televisiva, dividida em doze episódios de meia-hora cada, trabalhando em parceria com a premiada dramaturga inglesa Alice Birch (Lady Macbeth), mantendo o tom do livro e aperfeiçoando as mais ínfimas dinâmicas dos personagens. A realização ficou a cargo de Lenny Abrahamson (Room) e Hettie Macdonald, com seis episódios cada.

A série tem um poder universal e conquista pela similitude das experiências, pela poética na forma de contar e mostrar esta história destas duas pessoas profundamente tristes com a vida mas perdidamente apaixonadas umas pela outra, sendo o vínculo deste casal a maior preocupação e o foco maioritário do argumento.

E um dos pontos altos da adaptação é o par de actores que interpretam as duas personagens principais, Daisy Edgar-Jones e Paul Mescal, que merecem uma vénia e cuja química (testada inúmeras vezes em leituras conjuntas e individuais após vários castings ultrapassados até conseguirem os papéis) funciona na perfeição, com os jovens actores a conseguirem transparecer uma conexão física e mental tanto nas cenas mais simples de diálogo, que na maioria das vezes acabam por ser muito complexas, extensas, intensas e com uma forte carga dramática, como nas mais íntimas cenas sexuais, devendo também o excelente trabalho de realização ser mencionado, pela forma leve, elegante mas intensa como consegue captar estes momentos.



Para as várias cenas de cariz sexual (e são mesmo muitas), foi contratada a coordenadora de intimidade (intimacy coordinator) Ita O'Brien, que trabalhou em colaboração com a equipa de forma a criar não apenas um ambiente seguro para a sua concretização, mas também para criar momentos que fossem fiéis à natureza da história, contando a jornada sexual destes dois personagens sem entrar por caminhos que se assemelhassem às “50 sombras de Grey”. A premissa passava por colocar o sexo no cerne da questão de forma natural e integrada e não como algo gratuito. A forma como a relação sexual está construída passa também pelo modo como Sally Rooney a criou, como uma cena de diálogo, não existindo sexo apenas porque sim, mas como uma extensão daquela relação, cuja acção e atracção existente é tão carregada de significado como as palavras, o que não impediu o aparecimento de várias queixas de telespectadores sobre a quantidade de cenas de sexo que a série tem.



Na cena final de Normal People, Marianne e Connel conversam sobre os seus planos para o futuro e para a sua relação, e Marianne diz-lhe a seguinte frase “We have done so much good for one another” e conjuntamente com eles, estava eu, igualmente lavada em lágrimas, que só mais tarde pararam, enquanto me recusava a acreditar que era este o final guardado para estas personagens e a sua história. Confesso que passado algum tempo, ainda sentia comigo uma sensação estranha e pesada, enquanto pensava na beleza e na dor associada a todas as histórias de amor, independentemente do seu desfecho. Poderíamos pensar que todos queríamos uma relação assim, porque apesar das falhas e das derrotas, aqueles dois sentiam algo incrivelmente bonito um pelo outro, cresceram juntos e tentaram trazer ao de cima o melhor um do outro, e é nessa construção que está a verdadeira beleza de Normal People. Deixo-vos aqui o desafio de verem a cena final e não vos cair pelo menos uma lágrimazinha marota.

Com produção da BBC 3 e da Hulu, a série estreou a 26 de Abril no canal britânico.


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