10 Anos com Hayao Miyazaki
- Patricia Reis
- 25 de mai. de 2020
- 8 min de leitura
Não me recordo exactamente do ano, algures por volta de 2011, em que vi pela primeira vez um filme de animação de Hayao Miyazaki. Fazia zapping pelos canais do cabo, aborrecida por não encontrar nada interessante para ver na TV naquela tarde. Algures num dos canais de cinema surge um filme de animação tipicamente japonês. Engraçado, pensei, é raro encontrar anime nos canais de cabo. O que é isto? Um peixe? Uma rapariga? Será um peixe-rapariga?! E que frames incríveis são estes? O filme ía muito no início, as cenas corriam em catadupa, cada vez mais cativantes. Um ser pequeno de cabelo ruivo com uma relação estranha com o mar que acabara de fazer um novo amigo. Mas é humano!? O que é isto? Que filme é este? Era Ponyo.
Sequências do filme Ponyo
E assim, nessa tarde, descobri o Studio Ghibli, Miyazaki e todas as suas míticas personagens. Na altura lembro-me de ter pensado, como é que só o descobri agora? Porque é que isto não fez parte da minha infância paralelamente enquanto via os filmes da Disney? Gostava de poder voltar atrás e de ter tido a oportunidade de analisar os filmes produzidos pelo Studio Ghibli quando era mais nova, quando se é mais ingénuo e o pensamento não está viciado e amadurecido. Como seria ter conhecido Totoro com 9 ou 10 anos? Ou a Princesa Mononoke? Que diferença veria nessas personagens ao recordar os filmes já em idade adulta? Certamente a diferença seria muita, e não sei se com 10 anos teria a capacidade de entender toda a complexidade dos filmes de Miyazaki. Ficaria agarrada ao imaginário e ao mundo fantástico que ele tão bem desenvolve, mas creio que as mensagens mais subtis me escapariam. Geralmente quando me perguntam porque gosto tanto dos filmes dele e porque razão devem vê-los eu respondo dizendo que são filmes de animação que muitos adultos deviam ver, do mais puro e fantástico que vão encontrar. Abençoado zapping que me trouxe um dos meus realizadores favoritos, actualmente.

Hayao Miyazaki
Em 2005 Kaku Arakawa - realizador japonês - reuniu-se com Hayao Miyazaki para acertarem os detalhes daquilo que viria a ser um documentário sobre o a vida do mestre enquanto realizador. Kaku teria acesso a todo o processo criativo, seguindo-o não só enquanto trabalhava, mas também em momentos mais privados. Kaku seria a sua sombra. Hayao tinha apenas uma condição, só poderia ser filmado por Arakawa e sozinho, sem acompanhantes nem pessoal técnico atrás. Assim foi. O documentário resultou numa mini série de quatro episódios, 49 minutos cada, intitulado "10 anos com Hayao Miyazaki" e foi transmitido pela televisão nacional japonesa - a NHK. Uma das coisas boas que esta pandemia nos trouxe foi a disponibilidade de uma série de conteúdos que até então estavam reservados, guardados a sete chaves, do grande público. Com a máxima "fique em casa" muitos foram aqueles que disponibilizaram material online para nos obrigarem mesmo a ficar em casa. Conseguiram. Já não me recordo como dei com isto, mas algures num destes dias de isolamento, final de Abril, apareceu-me numa rede social qualquer: NHK disponibiliza documentário sobre Hayao Miyazaki de forma gratuita por tempo limitado. Vamos lá espreitar isso.
O primeiro episódio começa com a chegada de Miyazaki num "dois cavalos" - o carro - ao seu estúdio privado, Nibariki. São 10 da manhã, Miyazaki corre cortinas, abre janelas e guarda o casaco, mas antes de tudo isto, cumprimenta a casa, apesar de não estar lá ninguém. Diz: "Good Morning!". Kaku repara e comenta: "Who are you talking to?" Miyazaki responde: "With the residents. Don't know who they are, but they are here."

Kodama - Criaturas da floresta que aparecem no filme Princesa Mononoke
In my grandparents' time, it was believed that spirits existed everywhere...In trees, rivers, insects, wells, anything...I like the idea that we should all treasure everything because spirits might exist there, and we should treasure everything because there is a kind of life to everything - Hayao Miyazaki
Continuando o ritual de chegada ao estúdio, Hayao prepara um café de filtro e serve-o para uma caneca com a imagem de Totoro, de seguida, e com a ajuda de uma assistente, pega num banco de madeira e levam-no para o exterior, para o jardim perto da rua e da estrada. Colocam um letreiro que diz: "Have a seat" e regressam para o interior da casa. Miyazaki está prestes a começar um novo filme mas ainda sem grande rumo. Entretanto, coloca uma câmara de filmar no carro, colada ao apoio da cabeça do banco ao lado do condutor, agora num volkswagen moderno. Miyazaki quer filmar o que vê no dia a dia, o corriqueiro e está excitado com a ideia. Ajusta a câmara, fixa-a novamente e diz: "I just can't sit at my desk. Ideas come from the unexpected." A câmara de Arakawa desvia o olhar para os primeiros esquissos de Ponyo colados na parede, longe ainda de perceber o que pretende [Miyazaki] fazer com a personagem. Quase sempre de cigarro na boca e de avental vestido, Miyazaki é um ser de rituais, exigente e complexo, mas com uma das mentes mais criativas. Os quatro episódios deste pequeno documentáiro comprovam-no.
Kaku começou a rodagem do documentário por volta de meados de 2006 e estendeu-se até meados de 2013, acompanhando o desenvolvimento de Ponyo e As Asas do Vento. Seguimos os passos do mestre no seu estúdio privado, no Studio Ghibli ou na sua própria casa. Testemunhamos o processo criativo, desde a criação dos storyboards, desenho e aguarelas incluídos, à criação de personagens principais, ao frame principal sobre o qual todo o filme assenta, até ao teste de cor em computador, ao screen test de 10 segundos para verificar o andamento do filme, tudo isto enquanto Miyazaki pensa em voz alta e partilha connosco os seus pensamentos. Não sei se por vezes não nos sentimos dentro da cabeça dele ou uma sombra colada aos pés que vai atrás dele para todo o lado. Kaku procura apenas mostrar a realidade tal como ela é, sem interferir - nós somos espectadores da vida de Hayao. Dito isto, o nível de proximidade e intimidade conseguidos por Arakawa é impressionante. Mas não se fica por aqui. Não é só a parte profissional. Também há o lado pessoal onde acompanhamos alguns momentos mais privados de Miyazaki na sua casa ou a 'esticar' as pernas no quarteirão. Miyazaki já conta com 72 anos e a sua destreza mental e a agilidade nos dedos já não é a mesma. Por vezes bloqueia e fica irritado. Também lá estamos para acompanhar isso. Frustrações, inquietudes, dúvidas de quem já não vai para novo e sabe que o seu tempo enquanto director não durará muito mais.
Storyboards do filme Ponyo
Se por um lado é incrível presenciar todo o processo criativo de um dos maiores realizadores de animação e do Studio Ghibli, desde o tipo de lápis que ele utiliza e a maneira como lhe pega, como usa a mesa de luz e produz frame atrás de frame, as horas de produção e o número de trabalhadores criativos envolvidos, o que exige da sua equipa e o que quer oferecer ao espectador, por outro lado, o lado humano, é ainda mais incrível, e não sei se não será a parte mais interessante deste documentário. Miyazaki teve uma relação especial com a mãe e vive outra complicada com o filho - Goro - também ele realizador. Como saberíamos que várias personagens femininas dos seus filmes são inspiradas na sua mãe e como a conseguiu retratar? Ou como saber que Goro procura a aprovação de um pai ausente. Pai este que por ser um assumido workaholic, raramente esteve presente em casa e com o filho. E ainda, e também não menos interessante, a parte cultural, onde podemos encontrar pequenos pormenores da cultura nipónica desde a arquitectura dos espaços interiores e exteriores, à maneira de pensar dos intervenientes ou os próprios maneirismo: a maneira como andam, a maneira como comem os noodles ou como se relacionam uns com os outros. Sobre este último aspecto é interessante ver como Miyazaki e a sua equipa se adaptaram às condições de trabalho e de vida depois do grande sismo e tsunami de 2011 - paralelo com algumas das dificuldades que enfrentamos com a pandemia (claro que a escala é outra e o nível de desastre também). Este documentário pode ser observado de vários ângulos e em pouco menos de 4 horas ficamos com uma bela amostra do que é ser Miyazaki - o director, o pai, o filho, o japonês, a pessoa.
Capturas do documentário
Se já era fascinada pelo modo como Miyazaki conta uma estória, fiquei ainda mais depois de perceber o processo criativo que está por trás. Enquanto estudante de arquitectura uma das frases que me ficou na memória e me acompanha desde então é a pergunta: que estória queres contar? No fundo, todas as artes, de uma maneira ou de outra, restringem-se a esta pergunta. Uma fotografia conta uma estória, uma escultura conta uma história, uma peça de teatro idem e um livro ou uma casa também. No entanto, nem todas as estórias nos cativam e nem todas as estórias conseguem a nossa atenção. Porquê? Poderá ser porque não nos mostram nada de novo, poderá ser porque a estória foi mal contada e as partes não funcionam como um todo, poderá ser porque a estória é simplesmente má ou, poderá ser até, porque não tem estória alguma. Não sei responder à pergunta com certezas, mas sei que grande parte da minha curiosidade e dedicação às restantes artes aumentou à custa desta pergunta porque, em parte, procuro saber como outros artistas contam estórias, que estórias são essas, e porque me cativam (ou não). A arte pode mudar, mas a intenção é a mesma - contar uma boa estória, portanto sirvo-me das outras artes para me inspirar e perceber o processo criativo que está por trás. Hayao Miyazaki é dos melhores na sua arte precisamente por causa disso, por ser um exímio contador de estórias: o imaginário, as metáforas, as personagens, as mensagens, a autenticidade, está lá tudo. Foi fácil ter perdido dez segundos da minha atenção enquanto fazia zapping pelos canais da TV e ter ficado presa ao filme de Ponyo. Mas quão difícil é para um artista atingir este grau de atenção por parte de um espectador? Creio que só os melhores conseguem fazê-lo. A determinada altura, no segundo ou terceiro episódio, Hayao dizia: "You have to be determined to change the world with your film. Even though nothing changes. That's what it means to be a film maker." Acho que é isto.
O quarto e último episódio acaba com a estreia de As Asas do Vento e pouco tempo depois a decisão de Miyazaki se afastar do mundo da realização, preparando-se para a reforma. No entanto, no decorrer do ano passado surgiram algumas pistas que podem indicar que Miyazaki está de regresso ao activo e a preparar um novo filme que estará pronto entre 2020 e 2021. Aguardemos. Até lá, é aproveitar o facto da Netflix ter disponível desde Fevereiro grande parte do acervo do Studio Ghibli, incluindo do Miyazaki.
O documentário vai estar disponível no site da NHK até 2026 e também aqui estão disponibilizados muitos outros vídeos e programas nipónicos. Se forem fãs como eu desta cultura terão muito com que se entreter, desde aprender um pouco da língua japonesa, passando pela gastronomia ou o que visitar em Tóquio. Na altura quando descobri o site através do documentário senti-me um pouco - muito - nerd. Porque é que estás a ver vídeos de um canal de televisão joponês?! Até que o Bruno Nogueira falou disto nos directos do Como é que o Bicho Mexe, e eu senti-me menos sozinha. Nerd, mas acompanhada, ao menos isso.
O link para o primeiro episódio é este: (os restantes aparecem como sugestão no site)
E o trailer, também, já agora:
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