Unorthodox - A luta de uma jovem pela sua voz (Parte I)
- Raquel Pereira
- 14 de mai. de 2020
- 7 min de leitura

Com milhões de pessoas em casa devido à crise pandémica, a atenção de muitos está concentrada na oferta que os mais variados serviços de streaming fazem. Assim, muitas das produções estreadas nos últimos dois meses têm sugado a atenção de milhões de pessoas ávidas por novos conteúdos, e não havia página de notícias ou conta de Instagram que não fizesse menção à mini-série da Netflix Unorthodox como uma das séries obrigatórias dos últimos tempos.
Dividida em 4 episódios, a série segue a história da jovem Esther Shapiro (Shira Haas), que aos 19 anos foge da sua comunidade judaica hassídica de Williamsburg, em Brooklyn, Nova Iorque, em direcção a Berlim, onde vive a sua mãe, também ela em tempos afastada e consequentemente renegada por esta comunidade, apenas com um bilhete de avião na mão e algum dinheiro num envelope.
Nos minutos iniciais da série, e ainda sem compreender o contexto e a história desta jovem, à medida que a via numa tentativa de fuga e a correr com ar assustado pelas ruas de Brooklyn, a pergunta que assolou a minha cabeça imediatamente foi, a que imagino, passe pela cabeça de muitos “De que foge esta miúda?” Isso vai-nos sendo apresentado mais tarde, em flashbacks, enquanto a vemos tentar refazer a sua vida após a chegada à Europa, a adaptar-se a uma cultura livre e secular e em constante confronto com o seu passado.
Em Berlim, amedrontada pela sexualidade da mãe que mora com a sua parceira e impregnada com a ideia do abandono da progenitora, Esty (como é tratada pelos mais próximos) resolve tentar integrar-se nesta nova cidade sozinha, e rapidamente conhece um grupo de jovens que estuda música no conservatório, de quem se torna amiga, e com quem vai até ao lago Wannsee nos arredores de Berlim. É ali que um dos seus novos amigos lhe explica que foi numa vila dos arredores daquele lago que teve lugar a chamada Conferência de Wannsee em 1942, onde a reunida liderança nazi decidiu a exterminação do povo judeu. Anos depois, aquelas águas foram controladas pelos comunistas, que atiravam a matar a quem por ali tentava escapar para a República Federal da Alemanha.
Para uma judia ortodoxa, ouvir aquelas palavras deixa-a em completo choque e terror, mas Esty ganha coragem, e seguindo o exemplo dos jovens à sua volta, despe os collants e a camisa e prepara-se para entrar no lago. O que se segue é um momento muito simbólico e uma das imagens mais poderosas da série, quando decide tirar a peruca que cobre a sua cabeça e mergulhar naquelas águas, deixando a descoberto o seu cabelo rapado. É um momento que marca o corte com um passado regido por rígidas regras religiosas e que celebra a sua emancipação, cuja nova liberdade lhe permite mostrar verdadeiramente quem é e viver consoante as regras que pretende para si.

Mas retomemos a questão inicial: De que fugiu Esty? E que passado é este do qual ela se quer distanciar de forma tão radical?

Esty nasceu no seio da comunidade de Satmar, uma comunidade judaica ultraortodoxa hassídica de Williamsburg, como já acima mencionei, e cuja história parte da adaptação livre do livro autobiográfico Unorthodox: The Scandalous Rejection of My Hasidic Roots de Deborah Feldman, um best-seller onde a autora nascida na mesma comunidade, narra a história da sua rejeição do hassidismo aos 23 anos. A história de Deborah deixou-me boquiaberta e existem várias entrevistas suas disponíveis no YouTube que, para os mais interessados valem a pena ver, pois permitem-nos compreender um pouco melhor o que significa nascer e crescer sob as intransigentes normas que pautam a vida deste grupo religioso.
Mas para além da história de Deborah, basta pesquisar um pouco para encontrar várias histórias semelhantes, de tantas outras pessoas que também renegaram as suas raízes hassídicas, como o documentário da Netflix One of Us, que relata o sofrível processo de três pessoas que quiseram abandonar as suas comunidades e se viram renegados pela família e amigos, e muitas vezes perseguidos e aterrorizados durante o processo.
Para alguém que nasceu e cresceu numa Europa livre e teve sempre a opção de escolha sobre o seu percurso individual, Unorthodox é um choque cultural, e ao acompanhar a história de Esty não consegui deixar de paralisar em frente ao écran, dividida entre a admiração e a incredulidade perante tamanhos rigores religiosos e a consequente sufocação, que leva estas pessoas a escolher abandonar tudo o que conhecem, deixando para trás amigos e família, muitas das vezes sem poderem voltar a ter qualquer contacto com eles. Para quem, como eu, tiver fascínio por comunidades fechadas, vai ficar embasbacado a absorver todos aqueles pormenores sem pestanejar, e confesso que essas foram as partes da série que mais me fascinaram, não pela admiração mas pela estranheza de tudo aquilo.
A série tem apenas quatro episódios, portanto aquilo que vemos sobre o judaísmo hassídico é apenas um pequeno fragmento das suas muitas regras, costumes e rituais, e aquilo que conseguimos compreender é também muito limitado, não apenas por ser demasiado complexo e de difícil explicação, mas porque a sua compreensão parece-me intrínseca e fechada àquela mesma comunidade. Insatisfeita e curiosa, optei por fazer uma pequena pesquisa para tentar ter uma melhor percepção daquilo que significa ser judeu hassídico, e pertencer à comunidade de Satmar.
O hassidismo é um movimento judaico ultraordodoxo que surge na Europa Oriental no século XVIII, fundado por Israel ben Eliezer, mais conhecido como “Baal Shem Tov”, e cujos ensinamentos foram desenvolvidos e disseminados pelos seus discípulos. Pouco se sabe acerca da sua verdadeira biografia, e muito do que se conhece chegou através da tradição oral assim como de contos lendários, que exaltam as suas capacidades de liderança e habilidades carismáticas.
A imanência de Deus no universo é um princípio central na sua doutrina, que defende o aspecto devocional da prática religiosa e a dimensão espiritual da corporalidade e dos actos mundanos. Existe a ideia de uma ligação directa e constante com o divino, e o dever de viver uma vida santificada é infundido em todas as actividades, locais e ocasiões, sendo que até a acção mais mundana pode revelar uma essência espiritual. Nesse sentido, todos os aspectos da vida quotidiana seguem regras restritas que devem ser cumpridas de forma rigorosa e exaustiva, englobando tanto a esfera pública como íntima, desde a forma de vestir, os livros a ler, a educação, a alimentação e até a vida sexual.
Estas comunidades organizam-se em grupos independentes conhecidos como "tribunais" ou “dinastias”, cada um chefiado pelo seu próprio líder hereditário, o Rebe, que combina autoridade política e religiosa, funcionando como aglutinador na união da comunidade. Os vários "tribunais" compartilham convicções básicas, mas operam separados e possuem características e costumes únicos. A afiliação é muitas vezes mantida nas famílias por gerações, e ser hassídico é um factor sociológico - que implica, ao mesmo tempo, nascimento numa comunidade específica e lealdade a uma dinastia de Rebbes - e é puramente religioso.
Estima-se que no auge do movimento, no século XIX, aproximadamente metade dos judeus da Europa Oriental seriam hassídicos e antes da Segunda Guerra Mundial, centenas de comunidades hassídicas floresciam, maioritariamente em pequenas cidades e vilas como Bobov, Ger ou Satmar, porém estes grupos foram particularmente atingidos pelo Holocausto e muitos acabaram dizimados Os que sobreviveram, acabaram por se restabelecer fora do Leste Europeu, principalmente na área de Nova Iorque e em Israel. Os nomes originários destas comunidades, relacionados com as localidades europeias onde tiveram origem, acabaram por ser adoptados como o nome das próprias seitas nestas novas cidades, e Satmar, originária da cidade Húngara de Szatmárnémeti, actual Satu Mare na Roménia, é a comunidade de onde é originária Deborah Feldman assim como a personagem de Esther Shapiro da série da Netlix. São grupos formados por sobreviventes do holocausto, e que ainda hoje carregam o peso dessa tragédia consigo.
A população de cada um desses grupos tem vindo a aumentar progressivamente desde que as primeiras comunidades hassídicas americanas foram formadas no final das décadas de 1940 e 1950, havendo um crescimento especialmente rápido nas últimas duas décadas. Tal deve-se ao facto de terem taxas de natalidade altíssimas, sendo comum os casais terem mais de 10 filhos, números impulsionados por considerações religiosas e motivados pelo propósito de repovoar a comunidade após o Holocausto, substituindo os milhões de perdas humanas que então tiveram lugar. Estima-se que actualmente na área de Nova Iorque, existam cerca de 45000 pessoas pertencentes à comunidade de Satmar.
No entanto, apesar de morarem em Nova Iorque, um dos centros mundiais do progresso social e da liberdade, estas comunidades são construídas com base em costumes antigos, e mantêm o seu isolamento dos demais, vivendo em grupos muito unidos mas fechados ao mundo exterior e a qualquer tipo de costume ou regra externo, preferindo o separação total e defendendo que sempre que se misturam com os restantes e se integram na cultura local, são severamente castigados, sendo exemplo disso o holocausto. Apenas através da separação podem prevenir outro castigo divino tão severo quanto aquele.
Na comunidade de Satmar, as leis do tzniut são rigorosamente observadas, expressão que se refere aos traços de carácter, à modéstia e a um grupo de leis judaicas relativas à conduta que devem ser rigorosamente observadas. Assim, a forma de vestir das mulheres deve ser modesta, devendo o decote estar completamente coberto, os braços completamente tapados, as saias devem ser usadas por baixo dos joelhos e as meias devem ser opacas. O cabelo das mulheres deve ser rapado aquando do casamento e em público deverá ser utilizada uma peruca (sheytl) ou um lenço para cobrir a sua cabeça. Já os homens devem vestir-se com casaco preto e camisa branca, chapéu preto, barba e o cabelo deve ter os tão identificáveis cachos laterais (peiot). Em ocasiões especiais como o Shabbat, feriados judaicos ou ocasiões festivas, devem utilizar um chapéu mais elaborado, o chamado shtreimel ou spodik, pois, tal como as mulheres, também os homens devem cobrir a cabeça. Estes chapéus são normalmente feitos de pêlo de animal — de zibelinas ou de raposas — e podem custar entre mil a seis mil euros.
O casamento é um dos objectivos primordiais de qualquer família hassídica, que deve casar os seus filhos ainda jovens e com alguém pertencente à comunidade, que a família deve escolher previamente, tendo a mãe um papel primordial em avaliar se determinada jovem poderá ser interessante para o seu filho. Só após esta aprovação, é que os noivos são apresentados e em muitos casos, apenas estão juntos duas vezes durante um curto espaço de tempo antes do casamento, sendo que nestas ocasiões não deve haver qualquer tipo de contacto físico e a mulher só deve falar depois da palavra lhe ser dirigida pelo homem. O casamento não tem como propósito o amor, mas sim uma partilha de valores comuns e a ideia de construção de uma família e de procriação.
Na cerimónia de casamento, ocasião na qual os noivos se podem tocar pela primeira vez, homens e mulheres celebram separadamente, e as mulheres conversam, comem, dançam e comemoram com a noiva enquanto os homens o fazem com o noivo, sendo aliás a segregação por géneros uma constante nesta comunidade.
(Devido à complexidade e à quantidade de informação que reuni e que quero muito partilhar sobre este universo e sobre esta mini-série, o artigo sobre Unorthodox será dividido em duas partes. A parte II será lançada brevemente).
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