Como é que o bicho mexe?
- Patricia Reis
- 16 de mai. de 2020
- 11 min de leitura
Atualizado: 18 de mai. de 2020

Esquisso de Nuno Markl
Acho que a melhor forma de começar este texto é com um sincero e profundo agradecimento ao Bruno Nogueira. Obrigada Bruno, muito obrigada. Não sei se temos bem a noção do que foi alcançado com estes directos. Talvez só daqui a uns anos é que conseguiremos olhar para trás e analisar com maior clarividência tudo o que estamos a passar nesta crise pandémica, mas de uma coisa temos a certeza, é a de que o "como é que o bicho mexe?" vai fazer parte dessa estória. E nós tivemos lá. Todos os dias.
Depois do directo de ontem, também nós estamos de ressaca com a montanha russa de sentimentos que experienciámos - desculpem estarmos a açambarcar esta parte, mas também achamos que os directos são um bocadinho nosso, do público, e a prova disso é que acho que não fomos as únicas a sentir um misto de ansiedade, pânico, felicidade, espanto, tristeza, tudo ao mesmo tempo, e que, ontem, o Bruno terá sentido em grande escala. E, portanto, não só pela imensa gratidão e companhia que nos têm feito, decidimos dedicar um post a este belo pedaço de história. Como não tínhamos planeado escrever sobre isto, vimos os directos de forma desinteressada e descomprometida, sem notas ou apontamentos sobre os convidados que por lá foram passando ou sobre as músicas tocadas. Temos apenas a nossa memória. Mas acho que bate tudo certo, cremos que o Bruno prefere assim e vai de encontro ao conceito dos directos - espontaneidade e autenticidade. Nada foi feito com o intuito da posteridade ou da avaliação exterior, mas sim da simplicidade, aproveitando as ideias do momento e a total liberdade de criação. Por isso, concordamos com o Bruno, e fica somente na memória dos que tiveram o prazer de ver em directo aquela pequena maravilha acontecer.
Recuemos um pouco agora. No longínquo e deprimente dia 16 de Março, dois dias após o início deste confinamento e de estarmos todos meio em choque com o tsunami que se ía abater sobre nós, surge um live do Bruno Nogueira no Instagram, no cantinho superior esquerdo da app. "Estás a ver isto?" Perguntamos uma à outra. "É o Bruno a falar com malta!" Ficámos coladas a vê-lo falar com os seus amigos que por acaso são conhecidos de quase todos nós... Será que amanhã voltam?... E não é que voltaram? As conversas que se seguiram eram desprovidas de protagonismo ou intelectualidade. De repente era como se o Bruno estivesse a ligar aos amigos para saber como estavam, com a pequena (grande) diferença que nós estávamos a ouvi-lo. Como é que isto pode ter interesse? Primeiro que tudo, porque pareceu familiar - uma conversa normal, tão normal, que acho que cada um de nós se reviu e identificou com o que estava ali a ser feito, ligar a um amigo a perguntar como ele estava e como estão a ser estes dias, cada um em sua casa e sem aparato algum - e depois porque feitas as perguntas óbvias e que nos apoquentavam a todos, desde o "Como é que estás? Tens ido à rua? Vês pessoas? E a roupa, que fazes à roupa quando chegas a casa? Incendeias? E quando chega uma encomenda? Álcool para cima não é?", sugiram conversas aleatórias sobre quase tudo menos covid. Daqui para frente passaram a ser duas horas sem vírus nas nossas vidas. E foi isto que nos agarrou, a nós e a quase 60mil pessoas que diariamente se ligavam aos directos. Sabíamos que entre as 23h e a 1h não havia pandemia.
Não sabemos se a palavra certa é descomprimir, mas acreditamos que roçou a terapia de grupo, até porque sendo o Bruno e grande parte dos convidados artistas, e muitos deles humoristas, além de descomprimirmos, ríamos - coisa que já não fazíamos há algum tempo. Depois de mais um dia em casa, em tele trabalho ou não, sabíamos que, à noite, o Bruno vinha animar a malta com os seus amigos (e que clã!). Isto ajudou a tornar os dias mais leves, com um desejo de que as noites chegassem rápido para ver se esquecíamos toda a informação que nos despejavam em cima diária e repetidamente. Muitos de nós a viver sozinhos, outros em risco de perder o emprego ou com medo do que o futuro poderá trazer, e outros até que perderam familiares ou amigos. Mas às 23h lá estávamos nós, com encontro marcado no Instagram do Bruno, na ânsia de nos mantermos em contacto com alguém, de nos revermos em alguém, de nos mantermos de algum modo animais sociais, mentalmente sãos. E pelo menos durante 2h, deixávamos de estar tão sozinhos e os problemas podiam ficar um pouco lá mais para trás.
O próprio Bruno explicou várias vezes que isto começou sem grande intenção ou mistério por trás. Ele encontrava-se sozinho em casa com as três filhas enquanto a mulher ainda estava em Inglaterra a participar num filme. Ansioso, cansado e preocupado, segundo ele, os dias eram duros, muita coisa para fazer e tomar conta das filhas, sem ajuda de ninguém e sem contacto com adultos. Precisava de um escape. E assim foi, à noite fechava-se no escritório, enquanto bebia um copo de vinho para relaxar, e ligava aos amigos para saber como estavam. Depois decidiu fazê-lo em directo e no Instagram. As conversas foram ficando cada vez mais relaxadas e mais espontâneas, de repente já não era só um: "como é que isso vai?" já era um: "tenho aqui uma coisa para te (vos) mostrar" - e tanto podia ser uma música, uma sessão de karaoke, uma personagem fictícia, um cartaz, um corte de cabelo ou até um rabo. É impossível esquecer alguns desses momentos que nos fizeram rir às gargalhadas e portanto o nosso agradecimento não vai só para o Bruno, mas para todos os que o acompanharam e alinharam nesta aventura. Como esquecer as sessões de karaoke do Nuno Markl de Africa e Wuthering Heights? Como esquecer o chapéu do Salvador Martinha e as conversas com a Paula? Como esquecer a banheira do Albano Jerónimo? O pepino do Nelson Évora? O riso do DJ Nuno Lopes e da sua paixoneta por Rita Blanco? E esta por sua vez só queria ver o Quaresma-que-não-pode-atender-tem-que-ser-combinado? A Elsa (Frozen) da Inês Aires Pereira e os pés do marido? O papo recto e o trombone enferrujado da Beatriz Gosta? Os óculos e a "árvore de natal" do João Quadros? Os trabalhos manuais e o donut do João Manzarra? A almofada da Jessica Athayde ou do eu-não-estava-à-espera-desta-chamada da Bumba na Fofinha? A boa disposição do Gonçalo Waddington? As aparições do Rui Unas, do Eduardo Madeira, do César Mourão que tem que falar baixinho, ou do Fernando Alvim? O vírus que apanhou o Fernando Rocha ou do José Castelo Branco a cozinhar? Da Catarina Furtado que apareceu a defender o Markl ou da Carolina Torres que diz que ele a deixou pendurada. Foda-se Markl! Dos talheres roubados da Isabel Abreu e do marido que não quis aparecer. Do 'ganda' Toy e do curtido Afonso Pimentel que ía levar com a zaragatoa. Do Diogo Amaral que dormiu 15 dias na casa da Jessica e da Bárbara Norton de Matos que queria muito entrar e saber o que "isto" era. Das estórias caricatas do Jorge Mourato. Do Daniel Oliveira e o advogado do Manzarra? Já agora por falar de novo no Manzarra, e quando ele mamou do Ljubomir Stanisic? Só nós sabemos. E o Gregório Duvivier, que directamente do Brasil, enquanto fazia o jantar, nos falou sobre a complexa situação que se vive naquele país? (sim, raramente mas assuntos sérios também tinham lugar). E quando o Bernardo Silva desancou o Sporting? Ou quando a Georgina atende e o Ronaldo tava ao lado? Do Bruno Fernandes a responder ao Bernardo ou do Patrício a explicar como seria retomar os jogos nesta realidade covidiana? Foi tudo isto e muito mais porque falta falar das pequenas actuações musicais, começando pela Capicua, passando pelo Samuel Úria e Dino d'Santiago, pelo António Zambujo e o Ricardo Ribeiro, pela Ana Moura ou Gisela João, pelo Fela Kuti da Sara Tavares e pelo piaçaba do Noiserv ou ainda pelo grande Mário Laginha e pelo Salvador, o outro, o Sobral, o que dá ópera aos vizinhos.
Várias capturas de ecrã tiradas, durante os directos, por nós ou por outras pessoas disponibilizadas online
Mas ainda foi mais que isto, muito mais. Guardámos o melhor para o fim (meio, ainda vamos a meio). Todos estes momentos vão ficar para sempre guardados na nossa memória, mas há quatro deles que merecem destaque por terem uma carga emocional maior. O primeiro tem que ser da querida, simpática e lúcida aparição da Eunice Muñoz - Como assim a Eunice estava a assistir?! - que nos brindou com uns minutos de boa conversa e boa disposição. O segundo momento tem que ser a lindíssima interpretação da Maria João Pires quando toca o "Clair de Lune" de Debussy na sua casa em Belgais (nota pessoal, agora sou eu, a Patrícia, que introduz esta linha aqui, obrigada Maria João, obrigada, obrigada, obrigada, não consigo agradecer o suficiente nem dizer o quão importante e bonito foi ouvir a minha composição favorita para piano ganhar vida nestes directos, ainda por cima nestas circunstâncias, numa das mais bonitas versões que já ouvi). O terceiro momento terá que ser Nuno Markl a falar duma estação de rádio perdida no meio de nenhures na Noruega, no Pólo Norte - a Arctic Outpost - projecto pessoal do norte americano Cal Lockwood. Em poucos dias não só a conta de Instagram deste senhor passou de três para cerca de sessenta mil de seguidores, como passou a ter muitos ouvintes portugueses. Estava criado o elo entre Portugal e o Pólo Norte através destes directos, e músicas da Amália e de Mário Laginha, entre outros, passaram a ecoar num dos pontos mais longínquos do planeta. Mas vamos ao quarto momento - 25 de Abril. Dia especial para a nossa democracia, o peso da quarentena já se fazia sentir e passávamos um dos dias que costumava ser celebrado na rua, com outras pessoas, fechados em casa. Eis que aparece Vhils, convidado especial do Bruno para assinalar esta data e, ao som de José Afonso e de "Grândola Vila Morena", pega numa picareta e começa a esculpir o rosto de Zeca na parede da sua casa. Foram minutos muito intensos e seguramente umas das imagens mais fortes destes directos que muitos não esquecerão.
Falta ainda referir que no penúltimo dia, o Bruno entrou em directo com a Filomena Cautela enquanto decorria o "5 para a Meia Noite" trocando dois dedos de conversa com ela, Inês Lopes Gonçalves e os convidados da noite, Nuno Lopes e Tiago Rodrigues. Aliás, e já fora do live do Bruno Nogueira, Filomena e Inês foram protagonistas do maravilhoso sketch interpretando o próprio Bruno e Nuno Markl, respectivamente, havendo ainda espaço para uma pequena aparição do Manzarra - Inês, e do seu cabelo "donut". Se a caracterização não falhou, os tiques e maneirismos estavam lá todos e desde o copo de leite até ao karaoke do Markl, estas senhoras estiveram impecáveis.
Como se isto tudo não bastasse e não fosse já motivo suficiente de orgulho fazer parte desta aventura, é importante referir que o Bruno aproveitou estes directos para ajudar quem mais precisa e fazer recolha de donativos para diversas instituições de caridade que foi escolhendo, tendo arrecadado alguns milhares de euros que vão servir para ajudar quem mais precisa. Foi a cereja no topo do bolo!
E, agora sim, quase a chegar ao fim, falta falar de Filipe Melo. Este senhor merece um parágrafo só para ele. Não só porque tem talento, e ficou aqui comprovado, enquanto pessoa, músico mas também humorista (já desconfiávamos depois das aventuras de "Uma Nêspera no Cu"), mas porque, não sabemos como, havia uma quebra de assistência sempre que ele entrava em cena e começava a tocar uma música ao piano. Não sei quantas vezes nos emocionámos enquanto o ouvíamos ou enquanto tentávamos descobrir que música tocava, mas sei que dormíamos melhor e que esta foi, sem dúvida, a melhor maneira para encerrar estes belos encontros virtuais. Tudo graças ao Filipe. Aqui fica uma nota de agradecimento especial por todas as escolhas que ele fez - perfeitas para cada noite - e por ter tocado para nós, de graça! (sou eu outra vez, a Patrícia, se antes já queria aprender a tocar piano, depois disto e de ter ouvido a Maria João Pires, é certo que agora será um dos meus principais objectivos a atingir pós-quarentena - saber tocar piano - obrigada Pipão!). Já agora e para nos ajudar a lembrar todos estes momentos, criámos uma playlist na nossa conta do Spotify com algumas das músicas mais marcantes tocadas pelo Filipe assim como temas cantados pelo Markl no seu famoso karaoke ou por outros convidados. Se por acaso alguém nos estiver a ler e queira ajudar a completar esta lista de músicas, podem sempre comentar ou enviar email, faltam-nos imensas e seria perfeito conseguirmos ter a lista completa*.
E depois chegou o dia 15 de Maio e de repente foi Natal. E cerca de 170 mil pessoas juntaram-se, não para dizer adeus, mas para ver o último "bicho", por agora, e dar o prometido "até já". O Bruno pediu, e de norte a sul do país, e até bem longe de Portugal, milhares de pessoas foram ao baú buscar as luzes de Natal para enfeitarem as janelas, numa merecida homenagem. Era a vez do Bruno sentir que estávamos ali com ele, e que não era só um gajo no escritório a falar sozinho com um ecrã. Durante dois meses falou com todos nós e ontem quisemos agradecer-lhe por isso. A premissa da noite era uma grande simplicidade, como aliás todo este programa, mas o que aconteceu ganhou uma dimensão que roça a surrealidade e foi de uma beleza e genuinidade poucas vezes vistas. Começou, como sempre, com o genérico criado pelo Dillaz, mas desta vez não houve copo de vinho e a música foi cantada em directo, ao vivo, com uma viola, à porta de casa do Markl na Parede. A partir daqui o Bruno e o Markl arrancaram e foram em direcção a Lisboa - enquanto a Beatriz Gosta, Capicua e Carolina Torres faziam o mesmo no Porto - à procura de janelas enfeitadas. Não sem antes passarem numa rotunda que continha um cartaz com a palavra "CONA" escrita em letras garrafais, uma surpresa para o Bruno que o Markl já estava a par. E depois começou a loucura, e para além das janelas, as pessoas desceram de suas casas, algumas pegaram nos seus carros, e foram com eles percorrer Lisboa, apitando, acenando e gritando, a mesma palavra, vezes sem conta, "Obrigada"!. Até uma ambulância parada em plena rotunda do Marquês de Pombal ligou o megafone para lhes agradecer (agora vez da Raquel, lamechas assumida, confessar que passou metade deste directo a chorar). Também no Porto, e apesar da curta ligação que fizeram com a Beatriz, pareceu ter sido igualmente incrível. Até o "nosso" Manel Cruz apareceu à varanda para cantar, vimos nós depois no Instagram da Marta Bateira. Surreal.
Mas o melhor estava reservado para o fim e foi o Bruno que nos voltou a surpreender quando nos leva até ao Coliseu dos Recreios e nos brinda com uma actuação lindíssima da música "Lado Esquerdo" dos Clã feita pelo Salvador Sobral na casa de banho, o Nélson Évora a praticar o triplo salto nos corredores e um Filipe Melo sozinho, ao piano, no palco do Coliseu, a tocar "Silent Night" . E depois, dos bastidores, saltaram todos, todos os que juntamente com o Bruno nos acompanharam para se despedirem de nós. Mas a noite não estava terminada sem o Filipe voltar ao piano, acompanhado por Bruno a cantar "Vendaval" do Tony de Matos.

Imagem retirada do Instagram de Nuno Markl
Hoje, várias noticias davam conta de especialistas em redes sociais que se referiam ao que aconteceu como um "caso de estudo" e uma "referência", um fenómeno cultural palpável equivalente a um acontecimento futebolístico. Num artigo do Observador, Francisco Véstia, especialista na criação de estratégias de conteúdo para marcas, e Gustavo Cardoso, director da OberCom, fizeram uma pequena análise à forma como o Bruno pode ter alterado a maneira como se cria e consumem conteúdos online. Milhares de pessoas deixaram diariamente de consumir canais televisivos ou conteúdos de plataformas de streaming para ver este "programa" exclusivo do Instagram, que não tem guião e onde os intervenientes podem desligar o filtro normal de um canal generalista e conversar descontraidamente sobre todo e qualquer assunto usando expressões e palavras geralmente "proibidas" nestes meios. Houve uma aproximação a todos eles porque ali, todos eles são iguais a nós e podem conversar como se estivessem connosco, numa conversa de amigos. No mesmo artigo, era explicado que, em termos de números, o “bicho” só pode ser comparável com os máximos registados com o directo do rapper Tekashi 6ix9ine que atingiu os dois milhões de visualizações quando saiu da prisão, ou quando Drake aderiu ao directo de Tory Lanez, alcançando as 300 mil pessoas. No entanto, estamos a falar de estrelas que são fenómenos mundiais com milhões de seguidores nas redes sociais, ao contrário do Bruno, um humorista português, com um público-alvo geograficamente limitado, que teria cerca de 200 mil seguidores quando iniciou os directos, mas cuja afluência só pode ser comparada a fenómenos da música mundial. Explicações? Parece que ainda não as há!
O Bruno terminava sempre os directos a dizer-nos "Aguentem-se malta, vai ficar tudo bem". Não sabemos se vai ficar tudo bem depois desta crise mas, pelo menos, ficou tudo um pouco melhor durante dois meses graças a estes directos, e por isso, acabamos como começámos, muito obrigado Bruno & Cia.
Foi éipico!
* Entretanto o Filipe Melo partilhou hoje (18/05) a lista completa de músicas tocadas por ele. A playlist do Spotify foi actualizada depois disto.
Raquel e Patrícia
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