10 Anos de Patagónia - Parte IV
- Patricia Reis
- 9 de mar. de 2020
- 12 min de leitura
Atualizado: 2 de abr. de 2020
Décimo e décimo primeiro percursos: de Ushuaia (Argentina) para Buenos Aires (Argentina) - cerca de 3h de avião e Buenos Aires para Santiago (Chile) - cerca de 1100km
Touchdown in Buenos Aires. Apesar da alegria por regressar a esta cidade que já deixava saudades, foi uma descolagem de avião algo melancólica, em Ushuaia. Sair tão bruscamente da Patagónia não estava nos planos e tenho, mesmo, muita pena por não ter conseguido esticar o tempo e o dinheiro. Se calhar, aqui, fez falta o tal planeamento mais detalhado da viagem que poderíamos ter feito antes de partir, de modo a conseguirmos antever esta situação e a organizarmo-nos melhor. Ficam a ruta 40, Torres del Paine, El Chaltén e Bariloche, todos, na minha cabeça...Um dia, hei-de cá voltar! Despedidas feitas, desta vez é mesmo, Buenos Aires e a Patagónia ficam para trás, seguimos para Santiago de Chile.
Foram cerca de 20h de autocarro, não que o percurso fosse o mais extenso de todos, mas o controlo fronteiriço, esse sim, levou imenso tempo. O sistema não é igual em todos os países mas aqui foi o seguinte: sair do autocarro e esperar que a nossa vez chegasse (nesta fronteira há, especialmente, muito movimento de pesados de mercadorias e autocarros de turistas, o que significa muita coisa para revistar e verificar), revistar cada passageiro, verificar bagagem de mão e documentos pessoais, regressar tudo ao autocarro e seguir. O ponto de controlo acontece em plenos Andes, a cerca de 4000m de altitude e a escassos metros de Los Caracoles. Este é o nome dado ao percurso mais perigoso da ruta 60, considerado na altura como um dos mais perigosos do mundo. As fotos explicam o porquê do nome e o porquê de ser, também, um dos mais perigosos; é um serpenteado de curvas apertadas e estreitas, sem protecção nem iluminação, com inclinações a rondar os 10% durante cerca de 400m de extensão. O trânsito de pesados é constante, e no Inverno tem um factor extra: neve e gelo. Devo dizer que fazer o percurso no 2º andar do autocarro e nos lugares da frente foi um misto de: que paisagem inacreditável versus espero que o autocarro tenha bons travões. Algumas fotos da travessia dos Andes, no ponto Los Caracoles:
Viva Chile! Santiago. Cidade em franco desenvolvimento e palco de muitas oportunidades para empresas e companhias nas mais diversas áreas. Santiago tem uma localização muito interessante, senão vejamos: está a cerca de 1h viagem dos Andes e da fronteira com a Argentina e está a cerca de 1h da orla costeira, ou seja, a oferta de actividades ao ar livre e em contacto com a natureza é enorme assim que saímos da capital. Praia, surf, vinhas, montanhismo, estão a dois passos da cidade. Não sei se é só por isso (creio que pelo próprio espírito chileno também), mas a capital aparenta muito mais tranquilidade do que comparado com uma Buenos Aires, por exemplo. No entanto e, já agora, pegando na comparação com a capital argentina, a cidade de Santiago tem muitos mais habitantes (cerca de 2 milhões a mais que Bs As). Eu diria que Buenos Aires é mais cosmopolita, tem uma variedade e oferta culturais mais elevada e uma arquitectura de edifícios histórico-culturais mais imponente. Se, de repente, fechasse os olhos e me colocassem ali de pára-quedas, poderia dizer que estava numa cidade europeia. Santiago não. Santiago tem um feeling mais tradicional e sul americano. Por último, e muito notório naquela altura, a Argentina enfrentava uma crise económica. Ao contrário de Santiago, em Buenos Aires notava-se alguma decadência e isso sentia-se nas pessoas e no ambiente da cidade. Por tudo isto que acabei de dizer e pelo crescimento sólido desde o fim da ditadura no início da década de 90, a capital chilena atrai muitas empresas e jovens que ali se querem fixar.
Feitas as comparações vamos falar do cenário desta cidade: ter os Andes como pano de fundo (e o smog que fica ali "entalado" e não consegue dissipar devido à barreira montanhosa. Eu sei que esta parte não é bonita mas dá um certo misticismo à coisa) não é para todos. Vale a pena subir a todos os montes e edifícios mais altos para apreciar a vista. Nós subimos ao monte San Cristobal (860m de altitude) e ao monte Santa Lucia (300m). Ambos valem muito a pena não só pela vista, mas pelos parques ajardinados. Perdi a conta aos quilómetros que andámos entre bairros históricos da cidade. Aqui, também fomos a dois museus, incluindo La Chascona - uma das casas museu de Pablo Neruda. Parêntesis aqui, porque ia jurar que tínhamos visitado esta casa em Valparaíso (cidade que visitámos a seguir), a memória atraiçoa e rogo muitas pragas a mim mesma por não ter feito um diário de viagem. Continuando, o Pablito teve três residências, hoje transformadas em casas museu, uma delas está em Santiago e outras duas em Valparaíso - La Sebastiana e La Isla Negra. Estas duas últimas não visitámos, com muita pena minha. Todas têm uma arquitectura muito interessante e peculiar e mantêm-se intactas e fiéis ao estilo de vida de Neruda, enquanto lá viveu. Para quem tem curiosidade e aprecia a sua obra, aconselho vivamente.
Os cliques mais bonitos:
Décimo segundo percurso: de Santiago (Chile) para Valparaíso (Chile) - cerca de 100km
A caminho de Valparaíso, reparo noutra coisa que me impressiona pela positiva, os autocarros chilenos tinham um mecanismo muito simples que informava os passageiros a que velocidade viajavam. Caso o condutor cometesse alguma infração ou tivesse algum comportamento menos adequado, forneciam o número para onde devíamos ligar e denunciar. Em nenhum dos países da América do Sul por onde passei, vi tal sistema, e bem que era preciso. Na Argentina apanhámos um ou outro condutor mais excêntrico, mas valem-lhes as boas estradas. O Brasil, por outro lado, é o caos, desde as condições das estradas aos condutores. Há um exemplo muito bonito (sarcasmo) que conto no último percurso da viagem. Aguardem.
Valparaíso é uma das cidades portuárias mais importantes do Pacífico, o seu centro histórico está classificado pela UNESCO como Património da Humanidade, e as suas colinas estão cheia de casas coloridas, num labirinto de ruas e ruelas (e cabos de electricidade). Ficámos hospedados nesta zona, numa espécie de alojamento local. Digo "espécie" porque não sei descrever muito bem o que era aquilo. Em primeiro lugar, na porta da rua de acesso ao edifício não existia nada que indicasse que era um alojamento. Entrámos meio na dúvida e subimos umas escadas de tiro até ao primeiro piso. Aqui, damos de caras com a recepção/sala de estar e logo em frente uma porta de um dos quartos aberta e cheio de rapazes. Em festa. Só de cuecas. A dançarem. Com almofadas. Um deles veio receber-nos, quase sem fôlego, pedindo imensa desculpa, e mostrou-nos qual é o nosso quarto - que não tinha sido arranjado nem nada que o valha. Ele tentou ajeitar os lençóis usados de duas camas de solteiro e disse: podem dormir aqui. Pelo sim pelo não dormi na minha almofadinha da TAP e coloquei o meu páreo em cima da cama. Falta apenas descrever a casa de banho, que era uma espécie de santuário de gatos. Papel autocolante vinílico preto em todo o lado, com caras de gatos e as suas patinhas, na sanita, na banheira, no chão, nos espelhos. WTF?? (é por isso que o nosso blog se chama assim, é para estas ocasiões). Enfim, o cansaço era muito, serviu bem, e ainda deu para rir.
Décimo terceiro e décimo quarto percursos: de Valparaíso (Chile) para Córdoba (Argentina) - cerca de 1.100km e de Córdoba para Foz do Iguaçu (Brasil) - cerca 1.400km
Estamos a sair do Chile (nota para a segunda passagem pela estrada Los Caracoles - desta vez à noite! Extra fun) e recebo uma mensagem da minha mãe - raro, já que tínhamos combinado só trocar emails uma vez que o roaming era caro - e fico alerta. Perguntou onde estávamos, uma vez que tinha acabado de passar nos noticiários portugueses que um sismo de grandes dimensões tinha atingido o Chile. O sismo registou 8,8 na escala de Richter e o epicentro foi a cerca de 300km de Santiago (foi classificado como o sétimo maior sismo de sempre). Quando vi a mensagem acho que já íamos em terreno argentino e estavámos em viagem há 8 horas (saídos de Valparaíso ou Santiago, já não me recordo). Não conseguimos saber em que estado ficaram Valparaíso nem Santiago mas soubémos que ainda houve várias réplicas, um maremoto que não foi anunciado à população e, consequentemente, várias mortes. Se calhar, se tivéssemos feito a ruta 40, teríamos lá estado. Se calhar, há males que vêm por bem. Ses. Não vale a pena pensar nisso, mas esta foi por pouco.
A viagem até Córdoba levou cerca de 18h e, infelizmente, pouco me lembro desta cidade. Não que não parecesse interessante, mas ficámos muito pouco tempo - foi mais uma paragem técnica para dormir e trocar de autocarro - e o cansaço já começava a tomar conta de mim (e da minha memória). Foi também aqui que tivemos que decidir entre Assunção, capital do Paraguai ou Foz do Iguaçu no Brasil. Não íamos ter tempo para as duas tal como estava inicialmente previsto. Eu já tinha estado em Iguaçu uns meses antes com uma amiga, portanto a escolha mais óbvia parecia ser o Paraguai. Mas uns amigos meus - que também estavam a viajar pela América do Sul e com quem íamos trocando mensagens - avisaram-nos que passar a fronteira do Paraguai era complicado e implicava algum jogo de cintura para que não nos limpassem os bolsos. Eles tiveram que deixar leitores de mp3, algum dinheiro e outros gadgets. Confesso que já estávamos fartos de pequenas aventuras nas fronteiras e perder dinheiro ou os meus equipamentos, estava fora de questão. Seguimos, então, para Foz do Iguaçu, até porque foi, a seguir ao Glaciar Perito Moreno, um dos sítios mais bonitos onde já estive. Não me importei nada de repetir a visita.
Mais 20h de autocarro e chegamos a Foz do Iguaçu, no estado do Paraná, Brasil. Esta cidade fica no limite da fronteira brasileira com a argentina e a paraguaia. A dividir estes três países temos dois rios, o Iguaçu e o Paraná. É no rio do Iguaçu que vemos as famosas Cataratas e foi para lá que nos dirigimos. Estão classificadas como Património Mundial pela UNESCO e apresentam, nada mais nada menos que 275 quedas de água divididas pelos dois países, pelo que primeiro fomos ao lado brasileiro e, depois, ao argentino (são dois percursos diferentes). Estes dois percursos ainda são extensos e cobrem várias vistas das Cataratas, desde as partes superiores, às inferiores, incluindo zonas da bacia e da Garganta do Diabo. O Parque é uma das maiores reservas florestais da América do Sul e o clima é subtropical húmido. Facilmente atinge os 30 graus no Verão, mas se adicionarmos à humidade que se faz sentir, a sensação térmica é muito superior. Por tudo isto, e porque há muito para ver e desfrutar das vistas e da flora e da fauna dos Parques, é aconselhável fazer, num dia o lado brasileiro e, no outro, o argentino. Para além destes percursos ainda há uma série de actividades mais radicais que se podem fazer nas cataratas ou visitar outras atracções como o Parque das Aves que contém um grande acervo de aves e répteis. Por falar em répteis, a variedade de animais presente neste Parque é das mais bonitas que já vi, desde aves, borboletas, mamíferos ou reptéis, incluindo serpentes - este foi um teste muito difícil para mim, uma vez que tenho fobia a este tipo de animal rastejante. Felizmente não vi nenhum, mas este é um habitat natural, muito bem preservado, o que significa que nós somos meros visitantes num espaço que é deles. Ao longo do percurso vão sendo colocadas várias informações sobre os animais que podem aparecer (como o caso das serpentes) e avisam para não lhes tocarmos nem alimentar. Claro que há sempre o turista saloio que não consegue respeitar e acaba por dar gelados, fruta ou sandes por achar graça atrair os animais para junto dos humanos. Pessoas, é verdade, aqui há muitas mais, não tinha saudades. No entanto, aconselho vivamente a quem gosta de biologia que faça o percurso com um guia. Cruzei-me com alguns ao longo do percurso e fazem uma descrição detalhada do tipo de fauna e flora que vamos encontrando. Ainda consegui apanhar umas curiosidades muito interessantes sobre umas larvas com pêlo que são perigosas quando lhes tocamos, por exemplo. Bom saber.
Falta esclarecer o que é a Garganta do Diabo que mencionei acima. Garganta do Diabo é o nome dado a uma das quedas de água (ver primeiro vídeo que coloco a seguir), com a forma da letra "U", tem 150 metros de largura e cerca de 80 metros de altura, e em termos de massa de água, é das mais impressionantes do Parque. Nota final para o melhor naco de carne que comi na vida em Puerto de Iguazu (cidade do lado argentino) acompanhado de um bom vinho tinto. Daqui, regressámos a "casa" - Floripa. Está na hora das despedidas, mas antes as fotos e os vídeos:
Décimo quinto percurso: de Foz do Iguaçu (Brasil) para Florianópolis (Brasil) - cerca de 900km
Último percurso desta viagem e o mais assustador, para acabar em grande. Dos quatro visitados, o Brasil, é, sem dúvida, o pior em termos de condições e civismo rodoviário, já tinha constatado isso nalgumas viagens que tinha feito pelo interior do país, mas esta bate todas as outras. Viajávamos na rede Pluma (nunca me hei-de esquecer) com dois motoristas e, com o aproximar da noite e o cansaço acumulado, o sono começa a ganhar terreno. Contudo, não consigo adormecer, primeiro, o ar condicionado estava muito frio e, depois, o nosso motorista não parava de buzinar. Pensei: "Bem isto deve ser só pessoal a fazer manobras loucas, o costume". Não conseguia mesmo dormir com aquele frio, então levantei-me e fui bater à porta da cabine dos motoristas (por questões de segurança a zona frontal do autocarro está isolada do resto e só abre por dentro, tal como a cabine dos pilotos nos aviões). Um dos motoristas só abre uma nesga da porta, eu mal tenho tempo de pedir para aumentar a temperatura e ele fecha-me a porta na cara dizendo: "tá bom, tá bom". Parecia tenso, soou-me estranho, mas regresso ao lugar e tento perceber a questão das buzinadelas. Ok, não eramos nós a buzinar, mas sim os outros carros para nós. Digamos que íamos um bocado descontrolados e fazer ultrapassagens um pouco agressivas. Depois disto, já não sei bem a ordem dos eventos, mas sei que numa das paragens, numa estação de serviço, percebo que o ambiente entre os dois motoristas esta muito tenso, e algures ainda durante a noite o autocarro parou na berma. Pneu furado, pensei eu...Não! Estamos sem combustível, porque os motoristas esqueceram-se de abastecer e vamos ter que esperar por apoio. Passado não sei quanto tempo, lá seguimos viagem, e finalmente chegámos a Curitiba onde o motorista que teve sempre um comportamento mais tenso, diz que se recusa a conduzir mais e, furioso, vai-se embora (creio que havia problemas com a empresa Pluma e ele estava puto da vida, como dizem os brasileiros). O segundo motorista vem falar connosco e explica que o seu colega estava completamente descontrolado, que não conseguiu chamá-lo à razão e estava com receio do que ele pudesse fazer. Reclamámos com ele, com a empresa, com tudo, mas passadas 5h lá chegamos a Floripa sãos e salvos.
A viagem maravilha acaba aqui.
Haveria muito mais para contar, mas o texto já vai longo (demasiado) e teria que puxar ainda mais pela minha memória. Bem sei que o texto parece um amontoado de memórias soltas, mas de facto, isto foi o que me marcou mais e o que guardo com mais carinho. Talvez por isso, tenha optado por relatar mais sobre a experiência de viajar durante um mês com uma mochila às costas, sem grandes planos e onde o improviso entrou muitas vezes, do que tentar fazer um roteiro turístico sobre o que ver e fazer - nem tampouco conseguiria fazê-lo, se assim quisesse.
Sim, ficou muita coisa para ver, por fazer, por provar, mas tendo apenas um mês para viajar e um plano arrojado, era inevitável que algo ficasse de fora. Fica sempre, independentemente do tempo e da viagem. Creio que no fundo trata-se de uma questão de equilíbrio e de escolhas. Neste caso, foi o de conhecer o máximo de países, alternando entre o rural e o urbano. A Patagónia argentina e chilena, por si só, dava para ocupar um mês inteiro, o Chile - de Norte a Sul - daria para outro mês, e não saíamos daqui. Mas no final, e feitas as contas, estou muito contente com o equilíbrio encontrado. Não sei se será a viagem da minha vida, mas será certamente uma delas. Não só pelo conteúdo, que será difícil de igualar, mas por ter colocado a questão sobre o que realmente importa quando se viaja e o porquê de o fazermos.
Gostava de poder dizer que todas as viagens que fiz a seguir, com o roteiro bem definido, uma lista de sítios infindável a visitar, correndo sempre contra o tempo, e onde o que parece realmente importar são as fotos lindas para encher as redes sociais, me preencheram, mas não, muito pelo contrário. Falta-me descobrir se o que não me estimula são as cidades polidas e as multidões ou se, por outro lado, é a falta de improviso, a despreocupação com tudo o resto e o afastamento social que me seduz. Quando voltar a fazer uma viagem destas, e se chegar a uma conclusão, partilho o resultado.
Já agora, este é o primeiro exercício escrito que faço ao tentar recordar esta viagem, que sempre viveu, apenas, na minha cabeça, nos vídeos e nas fotografias que guardo. Finalmente saiu cá para fora e, agora, fica aqui também.
Para terminar, duas fotos, uma das minhas praias e o alpendre onde a viagem ganhou vida, ambas em Florianópolis, a minha terceira casa e onde tudo começou.
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