O último 'beat' de Tony Allen
- Patricia Reis
- 1 de mai. de 2020
- 5 min de leitura
Atualizado: 25 de mai. de 2020
Tony Oladipo Allen, nigeriano nascido nos anos 40, cara metade de Olufela Olusegun Oludotun Ransome-Kuti, Fela Kuti ou simplesmente, Fela, na criação do Afrobeat - não confundir com Afrobeats - que condensa ritmos e percussão complexas num estilo com influências que vão desde o jazz ao funk, passando por ritmos tradicionais africanos (parte ocidental) sobretudo do Gana e, claro, da Nigéria como o highlife ou a fuji music.
Tony começou a tocar com Fela na década de 60 em Lagos, Nigéria, e juntos formaram os Africa '70 que nos anos seguintes se tornaria a expressão máxima do Afrobeat e da contestação política fruto dos tempos tumultuosos de injustiça e corrupção que se viviam na Nigéria, e um pouco por todo o continente africano, no processo de descolonização. Aliás, não se consegue dissociar o movimento Afrobeat da sua mensagem política, bem presente nas letras das músicas, na postura contestatória nos concertos e na mensagem espalhada um pouco por todo o mundo, que teve como rosto máximo o verdadeiro Black President - Fela Kuti.

Tony Allen e Fela Kuti (atrás, à esquerda)
Em 1979, Tony decide seguir o seu próprio caminho e sai da banda - em parte porque não lhe era dado o devido valor (artístico e monetário), apesar do próprio Fela ter dito que sem Allen, o Afrobeat nunca teria nascido. Após a sua saída, dizem que foram precisos quatro bateristas para substituir a presença de Tony Allen na banda. É assim tão especial? É. Allen é, provavelmente, o melhor baterista em termos de ritmo. E porque é que dizem que foram precisos quatro bateristas para o substituir? Porque, provavelmente, nenhum consegue encarnar os quatros membros de Tony num só. Isto é, diziam que Allen tinha em cada membro do corpo com que tocava (pernas e braços) um músico, um ritmo diferente, e a sua mestria residia precisamente aí, no facto de apresentar uma sonoridade complexa em termos rítmicos. Mas não é só isto, é a suavidade e a precisão com que tocava. Não é para todos. No vídeo que coloco no final do artigo, podem comprovar isto que acabo de escrever.
“I try to make my drums sing and turn them into an orchestra. I don’t bash my drums. Instead of bashing, I caress. If you caress your wife, you’ll get good things from your wife; if you beat her, up I’m sure she’ll be your enemy.” - Tony Allen
A partir daqui, Allen dedicou-se à carreira a solo, desenvolveu a sua própria visão do Afrobeat cruzando-o com outros estilos, e a partir dos anos 90 participou em inúmeras colaborações que vão desde The Good, The Bad and The Queen da qual fazia parte Damon Alborn, mas também Rocket Juice and The Moon onde Flea fazia parte e mais recentemente com Jeff Mills onde aliava a música electrónica às suas influências. Aliás Jeff Mills e Tony Allen iam marcar presença na edição deste ano do Lisb_On Jardim Sonoro e era um dos festivais que ponderava regressar este ano não fosse a maldita pandemia.

Tony Allen a tocar em Melkweg em Amesterdão, 1988. Fotografia tirada por: Frans Schellekens
“Sometimes I travel all the way from here to a fucking country far away by flight just to play for 45 minutes! It’s frustrating, you know? They say, ‘You are paid!’ Fuck the money! It’s not the money side. It’s like torture, doing all that journey and stress just to play for 45 minutes. After 45 minutes, I’m just warming up!” - Tony Allen em entrevista para o The Guardian
Já assisti a muitos concertos, já vi alguns grandes nomes da música ao vivo, incluindo os mais diversos bateristas, e a bateria do Mr. Allen não tem comparação. Vi-o duas vezes em Portugal, ambas no "meu" Festival Músicas do Mundo (FMM) em Sines. A primeira foi em 2006. Parêntesis para a presença Seun Kuti (filho de Fela) e a banda Egypt 80, na edição desse ano também. Se nunca tive a felicidade de ver Fela Kuti e Africa '70, já tive, pelo menos, o privilégio de ter um 'cheirinho' do que seria um concerto de afrobeat dos anos 70 através de dois dos descendentes do pai Kuti. Seun em 2006 e Femi Kuti em 2004 e 2013, também no FMM. Femi deu um dos concertos (o de 2004) que mais guardo memória de todos os concertos que já vi neste festival, e já foram muitos. Entre quinze a trinta pessoas em cima do palco, numa combinação de instrumentos, ritmos, pessoas, danças e coros que não acabam, e claro, tal como o pai, saxofone e o punho erguido. Allen ainda regressou outra vez a Sines, em 2012 com o projecto Black Series e voltei a vê-lo e a ouvi-lo. Se há bateristas que pensam que é pela rapidez ou testosterona que empregam na bateria que conquistam o público, deveriam assistir a este senhor que mal parece transpirar, capaz de pôr uma audiência a dançar como se não fosse nada com ele. Como se a bateria fosse uma extensão do seu corpo, é daquelas actuações que se presta atenção aos detalhes, à maneira de colocar os pés e as mãos, à sua versatilidade e capacidade de improviso e até à postura. Pura classe.

Tony Allen "Tribute to Art Blakey" no Festival Emergences, 2017. Fotografia tirada por: Rémi Angeli
Em 2016, Tony Allen foi convidado a participar na serie Gateways promovida pelo The Guardian e Boiler Room, onde falou, entre outras coisas da sua carreira, influências e do cenário musical nigeriano nos anos 60 e 70. Outro convidado nesta masterclass foi o baterista Moses Boyd. Masterclass é a palavra certa para descrever este vídeo. Bateristas, aspirantes a, músicos ou amantes de, deviam ver e rever este vídeo, não só por tratar-se duma pérola mas, também, por ser um privilégio assistir a um dos maiores bateristas de sempre explicar o(s) "beat" (s) por trás da Afrobeat. De notar que, para ele - Tony -, parece uma tarefa pouco árdua, familiar, quase como se estivesse numa esplanada qualquer, enquanto, sem grande alarido, vai tocando numa bateria que lhe emprestaram. Note-se que para o jovem baterista Moses, o som custa-lhe mais a sair, obviamente. Bem sei que não tem os anos de aprendizagem do mestre sentado à sua frente, mas é notório como pequenos detalhes fazem toda a diferença e aquilo que o Mr. Allen faz é isto - o difícil parecer fácil. Não é para todos. Para ver e guardar num lugar especial:
“I never stop experimenting. I don’t like repeating myself too much. I need to move forward.” - Tony Allen para a revista The Wire, 2016
Ontem, antes de me deitar, soube da morte deste grande senhor e, portanto, hoje, tocam-se, aqui por casa, os melhores álbuns de Fela Kuti e Africa '70 onde Tony participou. O dia todo. Morreu a última metade original do Afrobeat. A sua música e mensagem ficarão para sempre. Obrigada Tony, agora vai tocar uns beats com o Fela.
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