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O Olhar Inquieto de Pedro Cabrita Reis em Serralves

  • Foto do escritor: Raquel Pereira
    Raquel Pereira
  • 23 de abr. de 2020
  • 4 min de leitura

A ROVING GAZE foi a exposição que marcou o regresso de Pedro Cabrita Reis ao Museu de Arte Contemporânea de Serralves, no Porto, após 20 anos de interregno desde que ali expôs em 1999 “Da Luz e do Espaço”, no então recém-inaugurado museu.

Ao contrário do que costumo fazer, fui ver esta exposição sem ter lido nada sobre a mesma e sem qualquer expectativa acerca do que iria encontrar. A obra de Cabrita Reis é conhecida e é também, na maioria das vezes, controversa e problemática, acendendo iras como o recente caso de vandalismo na escultura A Linha do Mar, recém-inaugurada junto ao Farol da Boa Nova, em Leça da Palmeira. E A ROVING GAZE foi uma verdadeira surpresa, que, confesso, demorou um pouco a assentar, até perceber o que pensar e onde a enquadrar.

Concebida especificamente para o espaço de Serralves, a ROVING GAZE é afinal uma peça única, pensada em grande escala, que consiste em 100 painéis que preenchem quase na totalidade a ala esquerda do museu, ocupando quatro salas no primeiro andar e todas as salas do piso inferior. Foi assim criado um ambiente de instalação total onde se cruzam a vida e a obra de Cabrita Reis, através da apresentação de momentos da sua história pessoal que se interligam depois ao seu trabalho enquanto artista. Podemos ver vestígios dos lugares por onde andou, das pessoas que conheceu, das coisas que fez. Tal é-nos apresentado através dos objectos que escolhe para integrarem os painéis, sejam fotografias instantâneas de paisagens, frutas ou flores que o artista costuma captar quase como uma "obsessão" e como um exercício na construção da obra, seja de todo o tipo de objectos do dia-a-dia que vai recolhendo, como esculturas, cadeiras, pratos, tecidos, lâmpadas, cartazes, tijolos, desenhos ou documentos. Há painéis onde podemos ler pequenas histórias e outros onde encontramos objectos e materiais ligados à "portuguesidade" e à iconografia nacional.

A exposição é criada pelo conjunto de painéis, dissociados uns dos outros e dispostos de forma aleatória, que sem seguir qualquer ordem cronológica, criam uma espécie de labirinto onde somos convidados e entrar e a deixar-nos perder, percorrendo o espaço consoante a nossa preferência, não havendo qualquer sentido de hierarquia na disposição das peças. Cada painel traz consigo uma história, e acaba por ser o gosto de cada um que nos atrai ou repele, que nos faz perder um minuto ou quinze a olhar para um objecto, para um detalhe, a fixar em algo que nos parece tão estranho ou incomum, a tentar descodificar determinada história ou momento, ou pelo contrário, que nos faça passar à frente de algo sem aparente interesse.

Os painéis foram construídos pelo artista no seu atelier em Lisboa, entre o dia 19 de Agosto e finais de Setembro de 2019, com a colaboração de uma equipa de jovens artistas a quem pediu ajuda para montar as 100 peças da obra única, sendo que o início da recolha destes pequenos/grandes objectos quotidianos remonta a 1999.

Uma das curiosidades, que acabou por chamar a atenção e, de certa forma, transformar a experiência desta exposição, foi o facto de haver um rádio preso a um dos painéis, sintonizado na estação M80, e que assim enchia uma das salas de música, e criava uma atmosfera muito mais descontraída e divertida do que geralmente encontramos nestes ambientes museológicos, pautados pelo clássico "Silêncio!". Demos por nós a cantar “Here Comes Your Man” dos queridos Pixies e também a inigualável Kate Bush e seu clássico “Wuthering Heights” no meio de Serralves enquanto nos perdíamos pelo labirinto de painéis. Possivelmente se a música daquele momento fosse outra, a experiência já teria sido completamente diferente, porque, confesso, quando penso nesta exposição penso invariavelmente nestes momentos musicais.

Agora, e com a devida distância temporal, já consigo avaliar a exposição de outra forma e ter outra percepção sobre o que vi em Serralves. Após o estranhamento inicial, ao entrar no espaço e ser confrontada com aquele conjunto enigmático e aquela estranha amálgama de coisas que não consegui imediatamente descortinar, a verdade é que à medida que fui vendo os painéis com atenção, lendo as textos, vendo os materiais, os detalhes, e me fui deixando perder na sua história, percebi que estava a acompanhar um pouco o seu percurso e vendo com ele os diferentes lugares que fazem parte de si. No fundo, senti que vamos tendo permissão para entrar na sua vida e conhecer um pouco mais quem é e o que pensa.

Se olharmos para a obra de Cabrita Reis há uma evidência física dos materiais utilizados, dos processos construtivos e uma grande variedade de meios. Essas características são também aqui exploradas, sendo visível o jogo entre os materiais e os objectos, despojados, quotidianos, simples e sem adornos ou adereços, muitos deles não tendo qualquer trabalho complementar para serem expostos para além do trabalho de colagem e montagem. São materiais anónimos e sem aparente significado que aqui se entrosam e criam novas associações e consequentemente novos espaços e memórias.

Não só em termos estéticos é uma experiência fascinante, como acaba por se tornar uma verdadeira experiência de arte contemporânea que nos transporta, ao mesmo tempo, para tantos pequenos sítios e pequenas histórias.


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