top of page

Música em tempos de quarentena

  • Foto do escritor: Patricia Reis
    Patricia Reis
  • 13 de abr. de 2020
  • 9 min de leitura

Atualizado: 14 de abr. de 2020


Durante este tempo de quarentena, a música pode ser uma grande companhia, capaz de levantar os ânimos ou, por outro lado, de nos deixar num estado melancólico e reflexivo - ainda mais - inerente a quem se encontra isolado de quase tudo e todos.


Nicolas Jaar lançou o seu quarto álbum (em nome próprio), Cenizas, a 27 de Março, em plena quarentena, e não podia ter vindo em melhor altura. Nicolas, chileno-americano, parece ter herdado a veia artística e activista do pai, Alfredo Jaar, bastante conhecido pelas suas instalações e arte conceptual com forte cariz social e político. Ultimamente os trabalhos de Nico reflectem uma angústia interna, pautada por questões políticas e existenciais, usando a música como forma de protesto. Provavelmente é um dos aspectos mais fortes do seu trabalho e que faz dele um dos produtores de música electrónica mais seguidos, apelidado por muitos de génio e por outros wannabe pretensioso. Mesmo que fizesse parte deste último grupo de pessoas, que não faço, creio que, no mínimo, seria de louvar o seu percurso através da música electrónica, tão pouco associada a formas de protesto ou capaz de reflectir os problemas do mundo.  


Mas vamos ao álbum. Cenizas significa cinzas em português e é curioso tanto o nome como a capa do álbum escolhidos. Jaar referiu que há uns anos atrás fez uma quarentena voluntária, deixando de fumar, comer carne, ou consumir álcool, escolhendo um lugar isolado e recôndido no mundo unicamente para se concentrar na produção musical. Mas nem tudo correu como esperado, se ele esperava que este isolamento lhe trouxesse respostas e o afastasse de uma certa negatividade, acabou por acontecer exactamente o contrário. A negatividade acabou por tomar conta dele e parece que quanto mais queria fugir dela, mais esta o perseguia. Portanto, acabou por ceder e perceber que ao invés de fugir tinha que enfrentar os seus medos e as questões que o atormentavam para, assim, renascer. Se me perguntarem o que acho que este álbum significa é isto mesmo: renascer. O renascer das cinzas das lutas internadas travadas - sugestão que o próprio perfil humano virado para dentro sugere na capa. E quão certeiro e interessante é o timing do lançamento deste álbum?




Capa do Álbum

Cenizas, Nicolas Jaar


Seguramente é dos trabalhos mais exploratórios e pessoais de Nicolas. No meio de atmosferas mais obscuras, por vezes minimal ou espirituais até, creio que é suposto deixarmos a música entrar pele adentro e ficar numa espécie de transe. Creio também que é um álbum para ouvir num momento recatado e ainda mais isolado - se possível - de tudo e todos, num momento de introspecção. Por isso mesmo, não é álbum que esteja talhado para a toda a gente, especialmente, dada a situação que se vive. No entanto, e quem se sentir capaz, é uma viagem daquelas.


À medida que escrevo estas linhas, oiço o set dele no Sónar 2012, em Barcelona, e o primeiro álbum Space is Only Noise. Todo o trabalho do Nico sempre me pareceu um pouco espiritual, a música dele eleva-nos, e Cenizas fez-me relembrar o porquê de ter ficado obcecada com este rapaz, e tudo aquilo que senti em 2012, voltou agora. Não sei se conseguiria catalogar a sua música dentro de um único género ou em vários géneros até. Nico está numa liga à parte e a música dele atrai-nos para um lugar vazio e contemplativo e foi nesse lugar que ele me deixou em 2012 e agora em 2020. Tenho para mim que ele é um rapaz que vem do futuro e que Cenizas apesar de diferente em termos de estado de espírito, tem um ponto comum com Space is Only Noise, estão ambos muitos anos à frente de todos nós.


No dia anterior ao lançamento de Cenizas publicou uma nota no seu site.


Deixo aqui as palavras do Nico, transcritas na íntegra:

(via nicolasjaar.net)

SHARDS...SOME THOUGHTS ON CENIZAS

Posted on Thu, 26 Mar 2020

{{{                                                                                                 }}} I want to share some thoughts about Cenizas before its release tomorrow.                                                  { The music comes from a desire to feel everything -- a few years ago, I stopped drinking alcohol, smoking, consuming caffeine, eating animals, etc., and, for a period of time, I also quarantined myself alone somewhere on the other side of the world to be able to work on music for months on end. I didn’t want to keep feeding the system. Its hunger, its past. I didn’t want to work from ambition. Where I would work to impress first, and love second. I wanted presence first. Love first. I thought that if I had this privilege and this luck, to be able to talk to people through sound, then I better work on myself &get rid of negative shards within me. I didn't want to unwittingly throw them back into the world. Of course, this didn't happen. (Sorry..!) The more I tried to get away from negativity, the more it kept piling up in a dark room, but as shards of sound. A lot of these shards can be heard in the last Against All Logic album, and countless things you'll never hear (thank goodness!). It made no sense to me that the more I tried to escape negativity, the more it could surface in the creative process. But the shards kept piling up and I had to accept the fact that the darkness that I was trying to get away from would always rear its head. Regardless of what I abstained from. And even more so when trying to orient myself towards the positive. Hopefully Cenizas only shows darkness so as to show a path out of it. I want this music to heal and help in thinking through difficult questions about one’s self, and one’s relationship to the state of things. We are living in a time of complete transformation, a metamorphosis— and the transformations are happening within as well. There is potential for great healing and great destruction. In a way, the music goes 'both directions at once', to quote the John Coltrane record.      {{{                                                                                                   }}} Speaking of Coltrane, his record Crescent was a guiding light and reference in the beginning of this new period. What is so special about Crescent is that it is quietly filled with the spirit of metamorphosis. Crescent is wet and dry at the same time: it's in the middle of a phase transition. It is transcendent in its subtlety -- in its humility. This is the feeling I aspire to the most -- it is the work that inspires me the most. It doesn't shout from the top of a mountain or wallow in its subjectivity. It doesn't rely on anything but a humble faith in melody, rhythm and freedom. Freedom. Faith in freedom. Personal freedom and freedom for others. I cannot be free if my sister, my brother, my neighbor, and my mother is not free. Politics is the spiritual manifestation of society. It is the juggling of freedoms. So is music. We are what we listen to, who we listen to and who we listen with.                             {.   {{.    }.     }.           }.                                      with love,,        nico



No mesmo dia, 27 de Março, Nine Inch Nails lançam Ghosts V: Together e VI: Locusts



Ghosts V e VI são a sequência do álbum lançado em 2008, Ghosts I-IV. Álbum sobretudo instrumental, músicas sem nome e como o próprio Trent Reznor descreveu: "soundtrack for daydreams". Doze anos depois, Trent e Atticus Ross decidiram completar o volume V e VI desta saga, em plena pandemia e isolamento forçado. A revista Rolling Stone chama-o "soundtrack for a world in crisis" - interessante comparação. Reznor aquando do lançamento dos álbuns lançou um tweet onde dizia: "some of it kind of happy, some not so much". O volume V, capa branca ou cinza claro, poderá representar o lado da esperança, a parte happy, aliás palavras como faith e hope são usadas para nomear algumas músicas (ao contrário do primeiro álbum, aqui as músicas têm nome), com sonoridades mais claras, espaçadas, criadoras de um ambiente mais calmo e espacial. O volume VI, por outro lado, é o reverso da moeda, capa preta e sonoridade diferente. Aqui, a parte mais sombria vem ao de cima e a tensão aumenta - estamos na parte not so much. Ambos parecem bastante coesos e mais interessantes que as primeiras experiências I-IV, e acredito que grande parte está relacionado com o facto de terem sido lançados nesta altura, e de sermos capazes de entender melhor a mensagem e, de certa forma, até nos revermos. Os dias têm sido passados numa mistura de sentimentos, de altos e baixos, indo da esperança ao desespero, passando pela calma e pela ansiedade, saltitando entre as zonas brancas e as pretas.


As palavras de Trent e Atticus transcritas na íntegra, através do seu site:

(via nin.com)

FRIENDS-


WEIRD TIMES INDEED…


AS THE NEWS SEEMS TO TURN EVER MORE GRIM BY THE HOUR, WE’VE FOUND OURSELVES VACILLATING WILDLY BETWEEN FEELING LIKE THERE MAY BE HOPE AT TIMES TO UTTER DESPAIR – OFTEN CHANGING MINUTE TO MINUTE. ALTHOUGH EACH OF US DEFINE OURSELVES AS ANTISOCIAL-TYPES WHO PREFER BEING ON OUR OWN, THIS SITUATION HAS REALLY MADE US APPRECIATE THE POWER AND NEED FOR CONNECTION.


MUSIC – WHETHER LISTENING TO IT, THINKING ABOUT IT OR CREATING IT – HAS ALWAYS BEEN THE THING THAT HELPED US GET THROUGH ANYTHING – GOOD OR BAD. WITH THAT IN MIND, WE DECIDED TO BURN THE MIDNIGHT OIL AND COMPLETE THESE NEW GHOSTS RECORDS AS A MEANS OF STAYING SOMEWHAT SANE.


GHOSTS V: TOGETHER IS FOR WHEN THINGS SEEM LIKE IT MIGHT ALL BE OKAY, AND GHOSTS VI: LOCUSTS… WELL, YOU’LL FIGURE IT OUT.


IT MADE US FEEL BETTER TO MAKE THESE AND IT FEELS GOOD TO SHARE THEM. MUSIC HAS ALWAYS HAD A WAY OF MAKING US FEEL A LITTLE LESS ALONE IN THE WORLD… AND HOPEFULLY IT DOES FOR YOU, TOO. REMEMBER, EVERYONE IS IN THIS THING TOGETHER AND THIS TOO SHALL PASS.

WE LOOK FORWARD TO SEEING YOU AGAIN SOON.

BE SMART AND SAFE AND TAKE CARE OF EACH OTHER.


WITH LOVE, TRENT & ATTICUS



No dia 30, Nick Cave, escreveu aos seus fiéis seguidores através da Red Hand Files. A Red Hand Files é uma plataforma que Nick arranjou para estar em contacto com seus fãs e seguidores, onde, dito de uma maneira muito simples, publica as respostas às perguntas que lhe são colocadas. Não vou desenvolver muito mais, uma vez que tenciono dedicar um artigo inteiro a este senhor e certamente falarei mais sobre isto. Por agora, interessa saber que foi aqui que ele escreveu o seguinte, quando questionado sobre o que podemos fazer ou criar durante este tempo de isolamento:


(...)

Together we have stepped into history and are now living inside an event unprecedented in our lifetime. (...) We have become eyewitnesses to a catastrophe that we are seeing unfold from the inside out. We are forced to isolate — to be vigilant, to be quiet, to watch and contemplate the possible implosion of our civilisation in real time. When we eventually step clear of this moment we will have discovered things about our leaders, our societal systems, our friends, our enemies and most of all, ourselves. We will know something of our resilience, our capacity for forgiveness, and our mutual vulnerability. Perhaps, it is a time to pay attention, to be mindful, to be observant.

(...)

For me, this is not a time to be buried in the business of creating. It is a time to take a backseat and use this opportunity to reflect on exactly what our function is — what we, as artists, are for.

(...)

Perhaps, we will also see the world through different eyes, with an awakened reverence for the wondrous thing that it is. This could, indeed, be the truest creative work of all.


Love, Nick x


from Red Hand Files #90

(via theredhandfiles.com)



Neste tempo de quarentena seria interessante privilegiar o silêncio ao barulho, devíamos ser capazes de produzir menos barulho, de pensar e ouvir mais do que falar ou escrever, ter a capacidade de nos concentrar mais em nós e na nossa relação com os outros, como um todo, aproveitar para separar o trigo do joio, ter capacidade de fazer exercícios de introspecção, de meditar até, quase como se de um retiro espiritual se tratasse. Não entendo que sejam tempos para sermos criativos mas sim reflexivos. Desta forma, acredito que poderíamos renascer das cinzas do Nico, sim, passando pelas terras sombrias dos Nine Inch Nails e de algum modo superá-las. Não me parece que estejamos nesse caminho (ou a maioria, certamente, não está), e portanto, a minha esperança que vá ficar tudo bem, é muito baixa. Gostava de poder dizer que vai ficar tudo diferente e melhor, isso sim. A quem conseguir acho que é um bom exercício, principalmente nos tempos que correm, analisar estas três obras - as obras e a nós próprios.


Como nota final, e em modo resumo, deixo um excerto do Red Hand Files #89 também escrito pelo Nick, em resposta a um fã, ainda sobre o tema da quarentena e da disseminação do vírus:


(...)

In isolation, we will be presented with our essence — of what we are personally and what we are as a society. We will be asked to decide what we want to preserve about our world and ourselves, and what we want to discard.


(...)

We should be careful about the noises we make — especially those with a public voice — and should not pretend to know what we do not. From within the clamour and tonnage of information and misinformation, of opinions and counter-opinions, of blame-games and grim prophecy and the most panic-inducing version of ‘Imagine’ ever recorded, emerges a simple message — wash your hands and (if you can) stay at home.


Love, Nick



Posts recentes

Ver tudo
Ten Day Album Challenge

No outro dia chegou-me, via Facebook, o seguinte desafio: Day 7 of the ten day album challenge. I've been challenged by XXXXXX to post an...

 
 
 
Como é que o bicho mexe?

Esquisso de Nuno Markl Acho que a melhor forma de começar este texto é com um sincero e profundo agradecimento ao Bruno Nogueira....

 
 
 

Comments


Formulário de Assinatura

©2020 por Whiskey Tango Foxtrot. Orgulhosamente criado com Wix.com

bottom of page